30/08/2024

São Jorge das fajãs

Estamos algures em São Jorge, num dia quente de Agosto, a olhar uma fajã bem lá no fundo. A descida nem se afigura complicada, mas cada passo adicional pelo trilho abaixo seria cobrado com altíssimos juros na subida. Os que fazem o caminho todo é porque tencionam pelo menos pernoitar. Espera-os um quintal para amanhar e levam consigo o suficiente para ficarem dois ou três dias. Vistas a esta distância as casas parecem de brinquedo, e de perto também não são para levar muito a sério: são no máximo compostas por duas divisões e não é certo que disponham de água canalizada, saneamento ou electricidade.

Há fajãs mais acessíveis, servidas por ziguezagueantes estradas asfaltadas ou de terra batida transitáveis por veículos motorizados. Contudo, as fajãs a que só se chega a pé por caminhos esconsos são um estímulo para a imaginação e um atavismo desafiante neste século de turismo de massas. As vidas intermitentes que lá decorrem só podem ser vagarosas, formatadas pela lonjura e pela privação ainda que voluntária. Para melhor as respeitarmos, preferimos efabulá-las em vez de tentar conhecê-las de perto.

São Jorge: caminho para a Fajã do Mero
À Fajã do Mero, quase a meio da costa norte da ilha, é possível hoje chegar por estradão: desce-se do Norte Pequeno à fajã da Penedia e depois continua-se para oeste por uma via que atravessa várias outras fajãs, uma delas com uma pequena capela. Na Fajã do Mero propriamente dita há três ou quatro casas rodeadas por dois hectares (se tanto) de terrenos para cultivo dispostos em socalcos. Quem sabe se tão exígua área de produção não sustentou, outrora, famílias inteiras? Em tempos não motorizados o acesso era outro, por trilhos íngremes talhados na encosta densamente florestada, ainda hoje abertos à fruição de turistas como nós. O temor da subida cedo nos fez desistir da descida, mas pudemos perceber, pelas obras em curso, como o progresso, neste caso sob a forma da electrificação, se vai lentamente acercando da fajã. Quem já se instalou há muito, e de forma avassaladora, foram o incenso (Pittosporum undulatum) e muitas outras invasoras vegetais temíveis, e é por isso que a vista prodigiosa nos deixa um certo amargo de boca, parcialmente atenuado pelos encontros com o Asplenium hemionitis e com a endémica Carex leviosa (que, em São Jorge, vimos só neste local).

Fajã do Nortezinho (ao fundo) com Erica azorica em primeiro plano
A Fajã do Nortezinho fica quase no extremo oriental de São Jorge, também na costa norte. É uma fajã elevada, quase cem metros acima do nível do mar, mas o único modo de lá chegarmos, por um caminho largo e sem obstáculos, é a pé, com o desnível do percurso excedendo os 450 metros. Na fajã só existe uma casa, que, a julgar pelas imagens de satélite, terá sido construída há uns quinze anos. Da próxima vez que formos a São Jorge reservaremos tempo e fôlego para não nos quedarmos, como desta vez, a meio da descida. Aquela casa esconde um mistério que, na verdade, pouco nos interessa desvendar. Atraem-nos mais as grandes urzes recortadas contra o azul do mar, acompanhadas por paus-brancos, folhados e faias, e por um elenco de herbáceas (como o Ammi trifoliatum e a Scabiosa nitens) que só existem nos Açores e que, para nós, já são parte da família.

1 comentário :

bettips disse...

Sejam bem regressados! Mais uma vez com imagens da nossa terra profunda. A nossa gente que resiste, bem como os seres vegetais mais ínfimos. Mas importantes.