25/10/2024

Pica mas não morde

Ptilostemon hispanicus (Lam.) Greuter


Para os masoquistas que gostam de se picar com moderação, sem espaventosos derramamentos de sangue, os cardos são a escolha acertada: os picos não são dos mais rígidos nem aguçados e, ao contrário das silvas e dos tojos, os cardos raramente formam maciços densos, de modo que só nos roçamos neles por opção consciente. Além disso, há-os muito diversos e com variados graus de pungência, desde os que provocam apenas ligeiras comichões até aos que, adequadamente pressionados, são capazes de nos abrir uns furinhos nas pontas dos dedos. O estranho hábito que a espécie humana tem de se cobrir de roupa dos pés à cabeça não nos permite facilmente usufruir da plenitude das sensações que o contacto da pele nua com os espinhos nos proporcionaria. Daí haver cardos que se especializaram em comprazer outros animais, como o cardo-burriqueiro (Onopordum acanthium) e o cardo-dos-cachorros que hoje vos apresentamos. A planta, na verdade, só existe no sul de Espanha, e por isso não é conhecida dos cães portugueses, mas o nome castelhano (cardo perruno) é inequívoco.

A afinidade da planta com os canídeos não é reflectida no seu nome científico, Ptilostemon hispanicus. Traduzido à letra, Ptilostemon significa “estames plumosos”, mas só dissecando a flor e observando-a à lupa é que é possível confirmar essa característica distintiva. Fortemente aparentado com o vulgaríssimo cardo-dos-picos (Galactites tomentosus), o cardo-dos-cachorros é o único represen­tante peninsular de um género que compreende catorze espécies, todas endémicas da região mediterrânica, entre elas a marroquina Ptilostemon dyricola. Capaz de atingir um metro de altura, com hastes erectas encimadas por três ou quatro capítulos vistosos, cada um dos quais com uns 4 cm de diâmetro, o Ptilostemon hispanicus é bem mais elegante do que o seu congénere norte-africano. E os longos espinhos amarelos que lhe guarnecem as folhas não só reforçam o efeito ornamental como desencorajam os herbívoros de lhe ferrarem o dente.

Florindo entre Junho e Agosto, o Ptilostemon hispanicus vive em matos secos e em zonas pedregosas e soalheiras, sempre sobre substratos calcários. Está presente em sete das oito províncias da Andaluzia (a excepção é Huelva) e também em Jaén, Albacete e Murcia. Foi na serra de Huétor, em Granada, que o fotografámos no inicio de um mês de Julho, viçoso e imune à canícula debilitante que se fazia sentir.

12/10/2024

Arenária amorosa & arenária picante



Há plantas tão coladas ao chão que dir-se-iam feitas para serem pisadas. Por vezes o pisoteio é inerente à sua forma de vida, pois o trânsito de pessoas ou de gado nitrifica o solo e torna-o mais acolhedor para plantas com tendências ruderais. Outras vezes o pisoteio é uma contingência inesperada que em nada beneficia as plantas: elas são rasteiras por adaptação ao habitat agreste, em lugares onde a presença humana ou de animais de grande porte era residual ou inexistente. O turismo de montanha, o pastoreio que ascende a altitudes cada vez mais elevadas, os bandos de cabras assilvestradas — tudo isso são factores que vieram perturbar existências vegetais até então tranquilas.

Arenaria tetraquetra subsp. amabilis (Bory) H. Lindb.


Noutras eras, subir ao topo da serra Nevada, a 3400 metros de altitude, era um feito demorado que exigia preparação e cautela, e que só aventureiros ou estudiosos tinham razões para tentar. Hoje em dia, são muitos os que sobem ao cume confortavelmente sentados em cabines de teleférico, e tão ávido amor pela natureza é quase sempre prejudicial ao objecto amado. Entre as plantas que se arriscam a serem calcadas sem terem recebido formação para tal destaca-se uma cariofilácea de flores brancas — uma arenária que, usando as armas da sedução para se defender, se declara amorosa. É isso que nos diz a palavra latina amabilis, sendo Arenaria tetraquetra subsp. amabilis o nome completo dessa planta que forma extensos tapetes verdes nas zonas mais elevadas da serra. Na verdade, quando em meados de Julho chegam as hordas de visitantes estivais já os tapetes mudaram para branco, pois a floração é tão abundante e cerrada que nem deixa ver as folhas. Porque ficam mais visíveis e não é de bom tom sujá-los, é provável que os tapetes brancos sejam menos castigados pelos pés dos caminhantes distraídos.

A Arenaria tetraquetra só não é endemismo espanhol porque surge também na vertente francesa dos Pirenéus. No entanto, as plantas pirenaicas, pertencentes à subespécie tetraqueta, são distintas das nevadenses por terem flores de quatro pétalas (veja aqui), e de facto a subespécie amabilis, adaptada a substratos siliciosos, é exclusiva da serra Nevada. Há ainda a subespécie murcica, que vive em algumas serras calcárias do sul de Espanha. Características comuns às três subespécies são a preferência por solos pedregosos, o porte rasteiro, e as minúsculas folhas triangulares, densamente imbricadas.

Arenaria pungens Clemente ex Lag.


Porque o género Arenaria é rico em espécies e subespécies (contam-se umas cinquenta só na Península Ibérica), pudemos sem dificuldade convocar uma outra arenária, também fotografada na serra Nevada, que mostra grande contraste com a primeira. A Arenaria pungens, ou arenária-picante, é um arbusto de uns 30 cm de altura que forma moitas arredondadas, defendidas dos ataques dos herbívoros pelas folhas rígidas e pontiagudas. Restrita a zonas de montanha a altitudes superiores a 1600 metros, não é exclusiva da serra Nevada: ocorre também na vizinha serra de Baza e na cordilheira do Atlas, em Marrocos.