19/12/2025

Beldroega cornuda

O famoso deserto de Tabernas, na altura em que o visitámos, nada tinha da aridez estéril que associamos à palavra deserto. A cobertura vegetal, ainda que esparsa, era iniludível, e de tal modo rica e diversa que poucos lugares da Europa, mesmo da Europa mediterrânica, a poderiam igualar. Claro que a Primavera no sudeste de Espanha estava a ser anormalmente molhada, e das chuvas de Abril que transitaram para Maio apanhámos ainda copiosa amostra. As plantas mostravam uma pujança colectiva que, provavelmente, só se dá a ver em anos excepcionais. Mas mesmo nos anos maus as plantas estão lá, ainda que debilitadas ou temporariamente invisíveis; a diversidade vegetal ímpar é intrínseca à paisagem agreste.

Em Fuerteventura, onde já fomos duas vezes, a impressão é outra. As zonas desérticas que cobrem quase toda a ilha apresentam-se irremediavelmente despidas; as moitas secas e espinhosas da asterácea Launaea arborescens, em vez de aliviarem a desolação, parecem apenas sublinhá-la. Certamente o cenário muda nas raríssimas ocasiões em que a chuva vem refrescar a ilha. Choveu algumas vezes quando lá estivemos em Dezembro de 2024, mas não ficámos tempo suficiente para testemunhar os efeitos que tal chuva terá tido na vegetação.

Betancuria, Fuerteventura
Na ausência quase completa de vegetação arbustiva, são as plantas anuais ou vivazes que beneficiam da efémera presença da humidade. Não havendo chuva, é nas zonas elevadas que a condensação pode amenizar a secura. E é sobretudo por isso que em Fuerteventura a maioria da vegetação interessante (incluindo algumas endémicas) se concentra nos picos de Jandía, em altitudes entre os 600 e os 800 metros, ou em alguns morros e montanhas da zona central da ilha. Os montes em volta de Betancuria são especialmente compensadores para quem se dedique à exploração botânica; e, por terem declives pouco acidentados, são fáceis de percorrer a pé. Foi em Betancuria, perto do topo do Morro Veloso, que encontrármos um prado de herbáceas — o único digno desse nome que vimos em toda a ilha, revestindo de verde fresco algumas dezenas de metros quadrados de solo. Eram plantas baixas, pouco ou nada extraordinárias (vimos Anagallis arvensis, Ajuga iva, Matthiola parviflora, Dipcadi serotinum, Neatostema apulum, Plantago ovata, Reichardia tingitana, etc.), mas para a vista eram um regalo maior do que um oásis num deserto, florindo como se morassem no melhor lugar do mundo.

Notoceras bicorne (Aiton) Amo


Fazia parte da florida amostra uma planta que, pela folhagem, pelo porte rasteiro, pelo tamanho diminuto (10 a 20 cm de comprimento), e pelas minúsculas flores amarelas, nos pareceu à primeira vista uma beldroega (Portulaca olearaceae). Embora nestas latitudes mais cálidas as beldroegas apareçam durante todo o ano, desconfiámos de uma floração tão fora de época; e, observadas as flores à lupa, concluímos tratar-se afinal de uma crucífera. Os frutos, já exibidos por alguns exemplares, revelaram-se peculiares: compridos, rematados por duas protuberâncias (ou cornos), dispostos em racimos alongados. Consultado o manual, a identificação foi célere. De seu nome Notoceras bicorne, esta espécie anual tem a distinção de ser a única do seu género, e distribui-se por zonas áridas ou desérticas desde o norte de África (incluindo Canárias) até ao Paquistão. Na Europa, a sua presença restringe-se ao sudeste da Península Ibérica — a saber, às províncias de Almeria, Múrcia e Alicante. Isso mesmo pudemos confirmar in loco, quando, quatro meses depois de travarmos conhecimento com a Notoceras bicorne em Fuerteventura, a reencontrámos em Almeria.

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