05/10/2005

Um jardim no Atlântico



Fotos: pva 0510 - Angra do Heroísmo: patamar superior do Jardim Duque da Terceira; a baía e o Monte Brasil, com um vislumbre do patamar inferior do jardim; subindo para o Outeiro da Memória; catedral de Angra com a fortaleza do Monte Brasil ao fundo (as árvores à direita são do jardim do Palácio dos Capitães Generais).

Os jardins e praças de Angra do Heroísmo são frequentados, mesmo à semana, por gente de todas as idades. Ninguém receia um mau encontro, e não há, como noutras paragens, aqueles olhares de desconfiança atirados de raspão aos forasteiros. Cumprimentam-se todos, até quem não se conhece, como percebi à minha custa com alguma surpresa.

Os mais idosos têm o hábito peculiar de não ir ao jardim para jogar cartas. Como os bancos até têm encosto, ao contrário do que agora sucede no Porto, simplesmente sentam-se e conversam. Mais estranho ainda: não é sobretudo de futebol que falam. Numa ilha com 59000 habitantes onde não é possível percorrer mais de 29 kms em linha recta, julgar-se-ia que todos os assuntos estariam há muito esgotados. Puro engano: a vida, e não a televisão, dá-lhes pano para mangas; até o estado do tempo é aqui tema apaixonante, com as nuvens ligeiras a obrigarem o sol a um permanente jogo de escondidas.

O Jardim Duque da Terceira, no coração de Angra, é um dos mais bonitos e acolhedores de quantos conheço. Reparte-se por dois patamares, ligados por um declive com caminhos desenhados a pedra de lava. É a meio desse declive que se erguem duas descomunais araucárias (A. heterophylla); é aí também que gatos e gatinhos, escondidos entre os arbustos, aguardam ao fim da tarde que lhes tragam comida. Partindo do patamar superior, uma escadaria conduz a uma íngreme vereda arborizada que leva ao Outeiro da Memória; lá do alto, no miradouro, vê-se a cidade desenhada como num mapa, rematada pelo semicírculo da baía e pela mole verdejante do Monte Brasil.

Com os olhos cheios de mar, desço novamente ao jardim, repositório de uma colecção de plantas, quase todas etiquetadas, de fazer inveja a alguns jardins botânicos. Das preciosidades que lá se encontram aqui se dará notícia em fascículos de periodicidade irregular. Para já conto um segredo: as traseiras do Hotel Angra Jardim - agora chamado, vá-se lá saber porquê, Angra Garden Hotel -, com entrada pela Praça Velha, estão viradas para o Jardim Duque da Terceira. Todos os quartos dessa ala têm varanda, nada se interpondo entre ela e o jardim: de um salto, qualquer medíocre acrobata aterraria sem mossa nos canteiros. Mas eu nem precisaria de arriscar os ossos, pois um formidável metrosídero (M. excelsa) estende grossa braçada até à minha varanda, como que convidando-me a descer. E ao fim da tarde, a título de bónus, a chilreada frenética da passarada que se abriga na árvore abafa todos os outros sons da cidade.

16 comentários :

Anónimo disse...

«Com um saco às costas
Busquei as pinhas verdes de rapaz,
Tirei do mar a onda nítrica a iões difusos
Que endereça os peixes, arfa ao vento e capta
Com ouvidos de sal os sons do Verão que morre.
Afaguei as ovelhas na trama lassa dos meses,
Vapor de água durando, já chuva no pinho lacrimoso. (...)»

Vitorino Nemésio, "Esquece ou Canta" in Limite de Idade, (1972)

Este "postal",de que muito gostei, fez-me reler alguns poemas de Vitorino Nemésio de que tomo a liberdade de aqui transcrever estes versos. Fico na expectativa dos "próximos fascículos".
S (de Sementinha ;-)

Anónimo disse...

Sim, e' um jardim precioso. Um outro "bonus" do jardim era um pequeno e muito agradavel restaurante/esplanada com comida vegetariana. Espero que ainda la' esteja...

Saudacoes caledonicas,

ver

Anónimo disse...

Não percebo o que é que têm contra os idosos jogarem às cartas no jardim. È uma boa maneira de usufruir um espaço verde (como ler ou conversar).

José Manuel

Maria Carvalho disse...

Não percebe porque de facto não temos nada contra. Se reler o texto com mais atenção, confirmará isto.

Anónimo disse...

Que post excelente...
Excelente. Obrigado. -- JRF

Anónimo disse...

Que bom recordar a vista das traseiras desse hotel...relembro também as mulheres e os homens que vêm manhãzinha cedo varrer as folhas velhas e acariciar os arbustos. Sugiro que se visite a igreja que faz par com o Obelisco da memória (não é este o nome correcto), com vista para o mar.

Paulo Araújo disse...

Sementinha:
Obrigado pela bonita lembrança.

Verónica:
Ainda há no jardim uma espécie de quiosque que serve comida, e vi lá gente a almoçar à volta de uma mesa. Não sabia que era comida vegetariana (confesso que, mesmo que soubesse, não me teria sentido atraído por ela).

Anónimo disse...

Um post que se lê e vê com grnde prazer.

Anónimo disse...

Errata: grande :)

Unknown disse...

Um belo texto que me deu imensa vontade de ir ver pessoalmente esses jardins!

Anónimo disse...

Ficou por dizer que no alto do jardim mora um obelisco em memória de D. Pedro IV que serviu de tema a um dos nossos maiores pintores, António Dacosta, de quem se verá, brevemente, retrospectiva em Serralves. Falo da Memória porque o jardim é, todo ele, a memória de um cosmopolitismo de outrora. Um museu de espécies, ao lado do Museu de Angra, cujo espólio simboliza o outro lado desse requintado trânsito marítimo, que pediria se criasse na Cidade Património Mundial um museu da pirataria.

Paulo Araújo disse...

Obrigado, Lino Portela, pelas úteis informações adicionais. Já agora, a foto no canto superior esquerdo foi tirada do pátio do Museu de Angra. E, falando de António Dacosta, lembro que as obras completas de Vitorino Nemésio, em curso de edição pela Imprensa Nacional, têm nas capas reproduções de pinturas de Dacosta (a excepção é o vol. II), mas nenhuma delas parece ser a que referiu. Aguardemos então a retrospectiva em Serralves.

Valter Jacinto disse...

Gostaria de saber que planta é esta, fotografada no Jardim:

https://www.flickr.com/photos/valter/20708823473/in/photostream/

Paulo Araújo disse...

Julgo que pertence ao género sul-americano Kohleria, mas é difícil estar seguro da espécie e pode até ser um híbrido hortícola. As imagens que se encontram no Google da Kohleria eriantha têm bastantes semelhanças com as suas, mas também algumas diferenças.

Valter Jacinto disse...

Obrigado pela identificação.

E esta, que planta será ?

https://www.flickr.com/photos/valter/21319634472/in/photostream/

Paulo Araújo disse...

É com certeza uma Begonia, mas elas são tantas que não arrisco dizer qual é. Já agora, uma pergunta sobre o jardim Duque da Terceira. Da última vez que o visitei, em 2013, as obras de renovação da estufa no patamar superior continuavam paradas, numa situação deplorável que se arrastava há anos. As obras já terminaram ou aquele entulho tudo, mal disfarçado com uma vedação de tela, continua a desfear o jardim?