17/06/2009

Simão Ferreira Sousa


Confluência dos rios Simão e Ferreira, em Valongo

O triplo antropónimo não vem aqui para chamar gente, mas sim porque uma percentagem, ainda que pequena, das águas que formam a porção da bacia do Douro na área metropolitana do Porto poderia com justiça ostentar essa combinação de nomes. O rio Simão, um pequeno curso de água restrito ao concelho de Valongo, junta-se ao rio Ferreira no limite sudeste da cidade. Revitalizado com as águas alheias, o rio Ferreira, que já viajara desde Paços de Ferreira, encontra forças para um ziguezague que rasga as serras de Santa Justa e Pias no sentido norte-sul. O seu destino é o concelho de Gondomar, onde, dois ou três quilómetros antes da meta, confia ao rio Sousa a responsabilidade de transportar a massa de água conjunta até à margem direita do Douro.


Freixos (Fraxinus angustifolia) e eucaliptos (Eucalyptus globulus) nas margens do rio Ferreira

É possível que Valongo seja o concelho do país com mais empreendimentos inacabados, lugares onde nunca morou nem há-de morar gente. Seja por falta de compradores ou por falência dos empreiteiros, essas urbanizações reduzidas a esqueletos, invadidas pela mesma vegetação que fora varrida para dar lugar às novas cidades, ficarão por muitos anos como testemunhas do desperdício e do mau planeamento - até que, por vergonha ou misericórdia, alguém as mande demolir. E consta ainda que Gondomar também dá boas cartas nesse campeonato de cidades-fantasma.

A pulsão de expandir indefinidamente a malha das cidades, nem que seja multiplicando os nados-mortos urbanísticos, faz recear que a médio prazo não sobre nesses concelhos qualquer área significativa livre de construções. E, contudo, o vale do rio Ferreira, entre Valongo e Gondomar, é a peça central de uma mancha verde ininterrupta que abrange as serras de Santa Justa, Pias e Castiçal [por comodidade, ainda que incorrectamente, designo-as colectivamente por serra de Valongo], e se estende também até Paredes. São matos, riachos, encostas e arvoredo perfazendo 25 km^2, uma área igual a três quintos da cidade do Porto; em suma, uma verdadeira floresta urbana no coração da metrópole. O poder político vai ganhando noção do valor destas serras: nos últimos trinta anos, foram várias as tentativas frustradas de aqui criar um parque natural. Em 31 de Julho de 2003, o Conselho de Ministros, reunido com grande pompa no Palácio do Freixo, tomou uma resolução nesse sentido que não teve qualquer resultado prático.

A riqueza botânica e geológica da serra de Valongo está descrita em vários documentos oficiais ou para-oficiais. Afinal de contas, a serra foi integrada na Rede Natura 2000, e a própria Câmara Municipal criou lá o Parque Paleozóico de Valongo. Contudo, se as pedras, os fósseis e os sedimentos estão mais ou menos a salvo da destruição, o mesmo não se passa com as plantas. Um amador de botânica portuense, William Tait, da comunidade britânica radicada na cidade, mandou a Charles Darwin, em 1869, exemplares de uma planta carnívora (Drosophyllum lusitanicum) colhidos na serra de Santa Justa. Se o tentasse fazer hoje, o mais certo é que não a encontrasse, pois a localização das escassas populações remanescentes é segredo ciosamente guardado pela comunidade científica. E outras plantas há, algumas endémicas, cuja existência é igualmente virtual, pois quem passeie pela serra quase só vê eucaliptos.


Vale de Couce, com amieiros (Alnus glutinosa) na margem esquerda do rio Ferreira

A eucaliptização, com os incêndios e a erosão do solo a ela associados, vem causando em Valongo uma perda acelerada de biodiversidade. Mas outros factores nefastos têm pesado na balança: as acácias nas zonas ribeirinhas, a poluição fluvial, e sobretudo a prática desregrada de desportos motorizados. Não há fim-de-semana em que a serra não seja atordoada por numerosos grupos de motociclistas em duas, três ou quatro rodas. Quem por lá passeie tem que conformar-se com o ruído e o pó, e desviar-se prudentemente para dar passagem aos estrepitosos veículos. Nenhuma das plantas que bordejam os larguíssimos caminhos escapa ao atropelamento. E nem aquelas em lugares mais afastados estão a salvo, pois o fluxo de motas e motoretas vai continuamente desbravando novos percursos.

No vale do rio Ferreira, em especial junto à aldeia de Couce, persistem amostras do antigo coberto arbóreo: carvalhos, amieiros, freixos, sobreiros, pilriteiros, salgueiros e até algumas pereiras-bravas. A vegetação arbustiva e herbácea, muito ameaçada, reserva-nos algumas surpresas, como a Silene que ontem aqui mostrámos. E mais haverá para mostrar em próximos números da série.

1 comentário :

Nuno Miguel Carvalho disse...

Um texto sublime sobre um tema medonho.
Um caso exemplar no que se refere à demissão, por parte do Estado, das suas mais elementares funções.