A quimera do luxo
Fotos: pva 0504 - Hospital Santos Silva - Gaia: tílias (1.ª foto); sobreiro, castanheiro e tília (2.ª foto); tílias, veigelas, pinheiros e hortênsias (3.ª foto); carvalho-alvarinho (4.ª foto)
O Hospital Eduardo Santos Silva, no Monte da Virgem (Gaia), está situado num recinto amplo em terreno onduloso e densamente arborizado: inúmeras árvores de grande porte, sombras frondosas, recantos ajardinados e, como moldura de todo o complexo, uma mata de sobreiros e carvalhos forrando a encosta. Apesar do mau estado dos edifícios, o ambiente repousante é já meio caminho para a cura. Para compreender o privilégio que é para a população gaiense ter o seu hospital num local assim, basta recordar a história recente dos dois maiores hospitais do Porto: a ampliação do Santo António, há uma década, sacrificou todo o seu antigo jardim; no São João, os sucessivos acrescentos ao edifício original (incluindo centro comercial e hotel!), e mais recentemente as obras do Metro, fazem temer que a envolvente arbórea do hospital, que começou por ser generosa, desapareça quase por completo.
Se os edifícios fossem recuperados ou reconstruídos, poderia Gaia ter um dos mais acolhedores hospitais do país. A ideia de hospital acolhedor nada tem de contra-senso, e decorre até do humanismo mais básico: trata-se de apaziguar a tragédia da doença com um ambiente aconchegante, que não se assemelhe ao de uma prisão ou quartel. Como este modo de pensar é pouco correntio mesmo entre políticos ex-médicos, planeava-se, até há poucos dias, construir o Hospital de Gaia noutro local, destinando-se os terrenos no Monte da Virgem ao inevitável condomínio de luxo. O que sem dúvida tem a sua coerência: num concelho onde escasseiam os locais aprazíveis, é natural que eles sejam um luxo só acessível a meia-dúzia de afortunados. A urbanização do actual recinto hospitalar até poderia conservar todas as árvores, mas o comum dos cidadãos deixaria de usufruir delas; e a multiplicação de condomínios fechados, de vidas que se resguardam do contágio de outras vidas, é uma fractura que vai minando o próprio conceito de cidade.
E como não pôr em dúvida a razoabilidade económica da edificação galopante que vai avassalando Gaia? Mesmo em prédios novos e em zonas comparativamente apetecíveis, como a vizinhança do Jardim Soares do Reis, são muitos os apartamentos devolutos. A Câmara tarda em compreender que, não sendo cada português obrigado por lei a ter mais do que uma residência, só pela valorização do espaço público pode o negócio imobiliário ter futuro. Pois quem se deixa iludir pelo condomínio dito de luxo se tudo à volta é inóspito, sem jardins, sem espaços para crianças, tantas vezes sem passeios nas ruas?
O caso do Hospital de Gaia registou há poucos dias uma feliz evolução: o Ministro da Saúde, na passada segunda-feira, declarou que a decisão de se construir o hospital noutro local será reavaliada, ponderando-se a hipótese de ele se manter onde está com instalações remodeladas. Oxalá que, mesmo com a discordância do Presidente da Câmara, entusiasta defensor do condomínio de luxo, essa sábia decisão não seja revertida.
4 comentários :
os condominios fechados são realmente "uma fractura que vai minando o próprio conceito de cidade" como diz e muito bem... Não acham estranho que à medida que nos estamos a "encostar" à Europa do 1º mundo, a nossa "sociedade" parece preferir os modelos terceiro-mundistas de condominios-fechados com vigilância permanente, devidamente isolados do mundo real e da convivência inter-social cosmopolita e mundana?
Não querendo ser advogada do diabo ... os condomínios fechados sempre existiram: eram a casa solarenga, a mansão,a quinta com portões inacessíveis, que abrigavam várias gerações e diferentes estractos sociais (os servidos e os servidores), microcosmos dentro da cidade. Acho eu. Pelo menos vejo isso assim.
Uma pergunta: a quem pertencia esse terreno onde está implantado o hospital? Por acaso saberão dizer?
S.(de Sementinha ;-)
Não conheço a história do Hospital Santos Silva, mas suponho que os terrenos foram doados - talvez mesmo pelo ilustre portuense que dá nome ao hospital.
Quanto aos condomínios: não acho que tenham sempre existido. É muito diferente alguém viver com a sua família numa grande propriedade (como "antes" acontecia) ou fechar-se, dentro de muros vigiados por guardas, com um grupo de desconhecidos que por razões puramente económicas considera pertencer à sua classe. Além do mais, hoje em dia é muito mais fácil, com a evolução tecnológica, cada pessoa reduzir ao mínimo a interacção com os que não pertencem ao círculo restrito das suas relações. Ou seja, enquanto os ricos de antes eram parte de uma teia que abrangia todas as classes sociais, hoje os condomínios fechados são ilhas ou cidadelas que recusam o convívio com a cidade.
Uma entrada excelente. Em vez de corrigir o caos urbanistico, a autarquia de Gaia parece mais preocupada em promover empreendimentos de "Engenharia Financeira", ao abrigo da ideia que "se é de luxo" é bom!!!
Abraço, jgomes (vistas)
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