Tisana 83.ª
Era uma vez um mono-asa. Como era mono-asa só podia voar numa direcção. Mas a generosa natureza tinha tomado as suas providências e assim ao mono-asa não importava nada saber para onde ia ou donde vinha. Por isso a sua asa tinha o aspecto duma barbatana e a maior parte das vezes servia-lhe de leque.
Ana Hatherly, 63 Tisanas (1973)
Tisanas de flores de tília (fotos mdlramos)
3 comentários :
"(...) quando a minha tia se encontrava agitada, pedia uma tisana em vez de chá, e era eu quem tirava do saco de farmácia a quantidade de tília necessária para colocar em água em ebulição. A secagem dos pedúnculos encurvara-os numa trama caprichosa em cuja urdidura se abriam as flores pálidas, como dispostas por um pintor, segundo o mais ornamental dos arranjos. As folhas, tendo perdido ou alterado o seu aspecto tomavam a figura dos mais impossíveis disparates: a asa transparente de uma mosca, o reverso de uma estampa, de uma pétala de rosa, mas como se tivessem sido empilhadas, calcadas ou entrelaçadas como na confeição de um ninho. Milhares de pequenos pormenores inúteis - liberalidade encantadora do farmacêutico - que se teriam perdido numa preparação industrial, davam-me, como num livro onde nos maravilhamos de encontrar o nome de alguém conhecido, o prazer de verificar que eram pés de verdadeiras tílias, como as que via na avenida da Estação, modificadas, não outras, mas elas mesmas, apenas envelhecidas. E como cada nova característica não era aí mais que a metamorfose de outra antiga, reconhecia nas pequenas bolas cinzentas os botões verdes que não se puderam desenvolver; mas, sobretudo, o brilho róseo, lunar e doce que desprendia as flores na frágil floresta de pedúnculos de onde estavam suspensas como pequenas rosas de ouro, ? sinal, como o fulgor que revela ainda sobre um muro o lugar de um fresco apagado, da diferença entre as partes da árvore que tinham tido "cor" e aquelas dela desprovidas - mostrava-me que estas pétalas eram exactamente as mesmas que, antes de florirem o saco de farmácia, tinham perfumado as noites de Primavera. Esta chama rosada de círio era ainda a sua cor, mas como em marca-d'água, adormecida nesta sua vida minguada que agora tinha, como o crepúsculo das flores. Em breve poderia a minha tia molhar na infusão borbulhante, onde saboreava o sabor da folha morta e da flor desmaiada, uma pequena madalena da qual me oferecia um bocado quando estivesse suficientemente macia."
(Marcel Proust, Du côté de chez Swann)
Não resisti a traduzir (que me perdoe o Pedro Tamen, mas não tenho a tradução dele) este pedaço de memória, que me parece ajustar-se bem às imagens que apresentas.
;-)
Eis o original:
«(...) Françoise faisait infuser son thé; ou, si ma tante se sentait agitée, elle demandait à la place sa tisane et c'était moi qui était chargé de faire tomber du sac de pharmacie dans une assiette la quantité de tilleul qu'il fallait mettre ensuite dans l'eau bouillante.
Le desséchement des tiges les avait incurvées en un capricieux treillage dans les entrelacs duquel s'ouvraient les fleurs pâles, comme si un peintre les eût arrangées, les eût fait poser de la façon la plus ornementale.
Les feuilles, ayant perdu ou changé leur aspect, avaient l'air des choses les impossible disparates, d'une aile transparente de mouche, de l'envers blanc d'une étiquette, d'un pétale de rose, mais qui eussent été empilées, concassées ou tressées comme dans la confection d'un nid.
Mille petits détails inutiles, charmante prodigalité du pharmacien,qu'on eût supprimés dans une préparation factice, me donnaient, comme un livre où on s'émerveille de rencontrer le nom d'une personne de connaissance, le plaisir de comprendre que c'était bien des tiges de vrais tilleuls, comme ceux que je voyais avenue de la Gare, modifiées, justement parce que c'étaient non des doubles, mais elles-même et qu'elles avaient vieilli.
Et chaque caractère nouveau n'y étant que la métamorphose d'un caractère ancien, dans de petites boules grises je reconnaissais les boutons verts qui ne sont pas venus à terme; mais surtout l'éclat rose, lunaire et doux qui faisait se détacher les fleurs dans la forêt fragile des tiges où elles étaient suspendues comme de petites roses d'or,'signe, comme la lueur qui révèle encore sur une muraille la place d'une fresque effacée, de la différence entre les parties de l'arbre qui avaient été "en couleur" et celles qui ne l'avaient pas été me montrait que ces pétales étaient bien ceux qui avant de fleurir le sac de pharmacie avaient embaumé les soirs de printemps.
Cette flamme rose de cierge, c'était leur couleur encore, mais à demi éteinte et assoupie dans cette vie diminuée qu'était la leur maintenant et qui est comme le crépuscule des fleurs.
Bientôt ma tante pouvait tremper dan l'infusion bouillante dont elle savourait le goût de feuille morte ou de fleur fanée une petite madeleine dont elle me tendait un morceau quand il était suffisamment amolli.»
Marcel Proust
Du côté de chez Swann -II ( 4º parágrafo)
Du côté de chez Swann -II ( 4º parágrafo)
Excelente lembrança!
Saiu há dias a mais recente edição (aumentada) das Tisanas de Ana Hatherly: 463 Tisanas.
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