15/11/2007

Introdução aos fundamentos - 1.ª aula


Alameda dos liquidâmbares - Parque de Serralves

«Entretanto, os liquidâmbares cansaram-se de esperar e resolveram assumir, unilateralmente, o Outono. Não sei como há quem ainda não tenha reparado e tirado as devidas consequências.» Não é certo que o recado/alusão/insinuação nos fosse dirigido, mas frases como estas fazem-nos sentir em falta. Reconhecida a anormalidade com o lamentável atraso que é inerente a estas coisas, a Manuela começou ontem a tentar remediá-la; esforço a que me junto hoje mostrando a alameda dos liquidâmbares de Serralves em pleno delírio outonal.

Posso recordar, em nossa defesa, que já antes e por mais do que uma vez tratámos do assunto, mas tal desculpa denuncia uma consciência pesada e tresanda a má pedagogia. Em qualquer escola, seja qual for o nível de ensino, todos os anos se leccionam as mesmas matérias. Nenhum bom professor se permite suspirar de enfado diante dos alunos ao ensinar o alfabeto ou a tabuada pela muitésima vez. Se na turma houver repetentes (como os há neste blogue), o professor deve considerar que há quem repita as matérias por gosto, e que é sua função atiçar essa possibilidade de entusiasmo. Mesmo que o reiterado interesse do aluno se esgote na parte introdutória do assunto - talvez para que o excesso de conhecimento não venha, como um holofote no escuro, roubar-lhe mistério e encanto -, é obrigação do professor acompanhar o aluno até onde ele quiser ir.

Quem me ensinou esta deontologia profissional foi a D. Natália. Os cruéis ou inconscientes, como eu próprio já fui, dirão que a D. Natália nunca aprendeu nada e ainda ensinou menos. Mas do que falo é de uma filosofia de vida que se baseia na aceitação calma dos nossos gostos e limitações. A D. Natália foi colega de curso de muitas gerações de estudantes da Faculdade de Ciências. Foi minha colega, como já tinha sido colega dos que me precederam e viria a sê-lo dos que me sucederam; só por acaso não foi também minha aluna. Não comparecia a exames; durante mais de duas décadas, antes de por fim se aposentar, estacionou firmemente no segundo ano do curso, frequentando sempre as mesmas disciplinas. Em cada ano, só era assídua nas primeiras semanas, enquanto não chegava, por exemplo, o teorema da função inversa: o que vinha depois, dizia-lhe a experiência, já não era para ela. Sabia de cor as aulas a que assistia, e apreciava-as com o sentido crítico de um melómano num concerto de música erudita, comparando em tom desfavorável os professores estreantes com os de antigamente. A partitura podia ser sempre a mesma, mas as inevitáveis mudanças - de professores, de colegas, das próprias condições da aula - davam um sabor único a cada ano lectivo. Num ano em que os alunos eram tantos que não havia lugar sentado para todos, ela refilou para o professor: «assim não pode ser». Falava com a autoridade de quem conhecera a faculdade em tempos bem melhores.

Tal como a D. Natália, podemos dizer que um certo jardim anda desmazelado ou que já vimos Outonos mais apurados. Mas dizemos isso porque gostamos de jardins e do Outono. E, tal como ela, não vamos desistir nem de uma coisa nem de outra, mesmo que nunca vamos além das primeiras lições.

3 comentários :

Rosa disse...

Tal como os Liquidâmbares... Toca a assumir o Outono que já se faz tarde.

eduardo b. disse...

Ora...

Anónimo disse...

É, também, obrigação do professor fazer o aluno ir mais além do que deseja. E é isso o que vocês, comigo, têm conseguido.
Excelente post, num soberbo blog.