17/09/2013

Rara alface

As ilhas dos Açores são território recente, tendo a mais nova (Corvo) cerca de 0.7 milhões de anos e a mais idosa (Santa Maria) um pouco mais de 8. Tempo suficiente para lá se instalar flora continental variada. Mas como chegaram as plantas às ilhas? O arquipélago dista hoje do continente europeu cerca de 1300 quilómetros, um pouco mais da América e um pouco menos da Madeira. Parecem distâncias excessivas para que as aves transportassem sementes até lá, ou para estas se manterem viáveis depois de uma longa travessia a flutuar no mar ou levadas pelo vento. O mais certo, porém, é que tenham sido precisamente esses os mecanismos que povoaram as ilhas de vegetação, algumas há menos de um milhão de anos e através de múltiplos eventos de (re)colonização. Crê-se que, nessas épocas, os ventos e as correntes marítimas seriam mais favoráveis a essa migração de plantas para a vizinhança dos Açores, sobretudo as de origem europeia, macaronésia ou africana, e que o oceano Atlântico seria um pouco mais estreito. Certo é que, apesar dos episódios vulcânicos muitas vezes violentos, os indivíduos que ali aportaram tiveram oportunidade de, sossegadamente e em condições climáticas relativamente estáveis, se adaptarem ao novo habitat e a novos polinizadores, se disseminarem para ecologias distintas da mesma ilha gerando novas linhagens, colonizarem ilhas próximas, hibridarem ou isolarem-se, criando-se assim os endemismos açorianos que hoje se conhecem.

Terra Brava — Terceira
A posição geográfica das ilhas não parece favorecer a dispersão e o cruzamento de espécies entre ilhas — a distância entre os sub-arquipélagos central e ocidental é de 218 quilómetros, e de 139 entre o grupo central e o oriental — mas também não deve ter exigido muitos esforços de adaptação da flora, graças a um clima oceânico húmido e a uma história de relativa tranquilidade climática. Porém, talvez estas sejam igualmente razões para o reduzido número de espécies endémicas por cada género e a aparente semelhança florística entre as ilhas, sobretudo quando se compara a flora açoriana com a de Cabo Verde, Madeira ou Canárias. Segundo M. Carine e H. Schäfer (Journal of Biogeography 37, 2010), oitenta por cento dos géneros com espécies endémicas nos Açores abrigam um único táxon e, embora as ilhas se espalhem por uns 600 quilómetros de oceano, contêm apenas quatro endemismos cuja distribuição está confinada a uma única ilha. Por exemplo, e ao contrário do que poderíamos prever, nas Flores, muito mais antiga do que o Pico e tão distante dos outros grupos de ilhas, ocorrem apenas três endemismos (quase) só seus (existem também no Corvo, que dista dela uns 19 quilómetros). Este é um assunto fascinante, que mantém ocupadas equipas de biólogos e geógrafos, confrontados com muitas dúvidas que os fósseis e a flora actual, parte dela em mau estado de conservação, não clarificam. A excepção a este cenário de interrogações é a ilha Graciosa, despojada da sua vegetação espontânea após o seu povoamento e com a percentagem mais elevada de flora introduzida em todo o arquipélago (~70%); é um exemplo paradigmático da nossa capacidade de destruição de ecossistemas. O estudo da flora açoriana é, todavia, recente, e quem sabe se não se descobrirão em breve mais endemismos, ou traços de adaptação ecológica, avisando-nos que afinal a especiação nas ilhas é assunto mais complexo do que parece.

Lactuca watsoniana Trel.



A Lactuca watsoniana, primeiro descrita por Trelease em 1897, é um dos endemismos dos Açores de aspecto mais surpreendente. Tem laços genéticos com a alface das nossas saladas (Lactuca sativa L.), mas a base é lenhosa, pode atingir dois metros de altura e tem folhas de tamanho invulgarmente grande. O nome alfacinha que nas ilhas lhe atribuem é certamente uma amostra do bom humor açoriano. Estas e outras diferenças morfológicas levam a crer que a sua inclusão no género Lactuca deveria ser revista, embora se conheçam espécies americanas deste género de porte igualmente desmesurado. As folhas são cordiformes, carnudas, glabras, as basais com um longo pecíolo, as caulinares a abraçar o caule. As inflorescências lembram as da chicória, mas com florículos brancos-de-neve, 8 a 15 por cada capítulo. Há registo de populações nas ilhas Terceira, São Miguel, São Jorge, Pico e Faial, mas todas com poucas plantas (o total não parece exceder os mil indivíduos) e numa área de distribuição muito restrita (sobretudo em crateras vulcânicas, ravinas e florestas de cedro-do-mato, em geral a altitudes elevadas e em lugares com muita água), onde compete com plantas exóticas, sofre a voracidade dos coelhos e não consegue superar a redução, ou indiferença, dos polinizadores. Por isso está na lista vermelha da IUCN de espécies em risco de extinção.

Encontrámos as primeiras plantas das fotos numa ravina da Rocha do Chambre, na freguesia de Biscoitos, que fica no interior da ilha Terceira. Depois vimos mais exemplares no bordo da caldeira de Santa Bárbara, num recanto sombrio e muito húmido, a uns 920 metros de altitude, pontuado por vários pés da orquídea Platanthera micrantha.

2 comentários :

bea disse...

E tão bonita, erguida assim para o alto.

ZG disse...

Uma alface bem bonita e rara, efectivamente!!