30/09/2014

Caldeira do Faial



O visitante que quiser descer à caldeira do Faial não o pode fazer sem autorização, e terá que ser acompanhado por um guia pago. O trilho não é especialmente perigoso nem apresenta obstáculos inultrapassáveis, e está suficientemente calcorreado para dissipar quaisquer dúvidas sobre o caminho a seguir. Quem for ágil que baste e tiver experiência de caminhadas na natureza poucas dificuldades teria em chegar sozinho ao fundo da caldeira, mesmo naqueles dias em que o nevoeiro pudesse momentaneamente perturbar o sentido de orientação. Não foi pois a preocupação pela segurança dos visitantes que levou o Parque Natural do Faial a impor estas restrições de acesso, mas antes a crença de que uma sobrecarga de visitantes e o possível comportamente desregrado de alguns deles poderiam danificar aquele que é o mais precioso reduto de vegetação natural de toda a ilha.

Se em teoria este argumento é convincente, já a prática deixa algo a desejar. Definir um limite diário, semanal ou mesmo mensal de visitantes numa área ambientalmente sensível e sujeita a grande pressão turística é um procedimento adequado e necessário. Mas obrigar cada potencial visitante, ou grupo de visitantes, a pagar os serviços de um guia, quando tais serviços poderiam em muitos casos ser dispensados, é restringir o usufruto da natureza a quem tenha (bastante) dinheiro para isso. E é também um exemplo curioso, embora em pequeníssima escala, de como o Estado se empenha em criar e alimentar um negócio exclusivamente privado e em boa parte supérfluo.

Como acontece em várias outras áreas protegidas tanto nos Açores como em Portugal continental, parece vigorar a ideia de que para salvaguardar os valores naturais de uma certa área basta declarar que o acesso a ela é interdito ou condicionado. Livre de intrusos indesejáveis, a natureza saberá reconstituir-se sem ajuda, regressando à forma primordial que era a sua antes da chegada do bicho homem: isso a que os burocratas do ambiente chamam wilderness. Talvez a gestão pelo abandono seja adequada na caldeira de Santa Bárbara e noutros lugares da ilha Terceira onde o revestimento vegetal pode sem exagero ser descrito como floresta virgem, mas não o é na caldeira do Faial nem em qualquer outro lugar nominalmente protegido da mesma ilha.

Até há trinta ou quarenta anos, o interior da caldeira era usado intensamente para pastoreio de cabras, ovelhas e até de vacas. Nas vertentes mais suaves, a vegetação arbórea está por isso bastante reduzida. O fim do pastoreio vai ditando o adensamento do coberto vegetal, mas a presença de elementos espúrios como as hortênsias (Hydrangea macrophylla), rocas-da-velha (Hedychium gardnerianum) e silvas (Rubus ulmifolius) inviabiliza a regeneração da floresta original. É causa de desgosto e de perplexidade que nem aqui, num local que deveria funcionar como símbolo da conservação da natureza no arquipélago, tenha sido feito qualquer esforço para erradicar as hortênsias. E o fundo da caldeira, antes coberto por um lago que ficou muito diminuído por altura da erupção dos Capelinhos, ameaça agora transformar-se num silvado contínuo.

A importância da caldeira do Faial explica-se de modo simples: nas suas vertentes, que vencem um desnível superior a 300 metros, e também ao longo do seu perímetro, que tem cerca de 7 Km de extensão, encontra-se uma representação quase completa da flora nativa açoriana, com as excepções óbvias daquelas espécies que vivem exclusivamente a baixas altitudes e de outras que não existem no grupo central no arquipélago. Para além dos habituais juníperos, azevinhos, folhados, loureiros, mirtilos e urzes, das multidões de fetos e de musgos, e das grandes asteráceas de floração estival como o patalugo e a leituga, pudemos ver trovisco-macho em abundância e ainda reencontrámos, para grande regozijo nosso, a raríssima alfacinha (Lactuca watsoniana) que só conhecíamos da ilha Terceira.


Ilex perado Aiton subsp. azorica (Loes.) Tutin


Eis uma boa ocasião para remediar uma grave lacuna: apesar de referirmos muitas vezes o azevinho açoriano, nunca aqui o mostrámos, talvez por nunca lhe termos fotografado as bagas maduras, já pintadas de vermelho. Tendo a espera ultrapassado os limites do razoável, contentar-nos-emos com as bagas verdes, e como bónus juntamos uma imagem das flores, que são brancas, pequenas e discretas, mas revelam-se compatíveis com o calendário das nossas estadias nos Açores. O azevinho açoriano, endémico do arquipélago e componente essencial das florestas húmidas de altitude, é uma árvore perenifólia, de copa larga, que pode ultrapassar os cinco metros de altura. Nas zonas de maior humidade, em que as nuvens só se ausentam a custo e por períodos muito curtos, os azevinhos rivalizam com os juníperos na quantidade e qualidade da flora epífita de musgos e fetos a que dão acolhimento. Um dos inquilinos habituais dessas árvores é a língua-de-vaca, um feto endémico dos Açores e da Madeira.


Pico: floresta de junípero (à esquerda), loureiro (ao centro) e azevinho (à direita)

4 comentários :

ZG disse...

A really lovely place!!!

bea disse...

A caldeira do Faial parece um veludo irreal. Que coisa tão bonita!
Obrigada pela mostra

Carlos M. Silva disse...

Um texto curto e inteligente, que em poucas palavras, evidencia o 'modus operandi' em que supostamente quem decide (decide? decide por omissão? decide por simplesmente assinar um despachozito?) acha que decide bem. Claro ..decide bem, mas para outrem, sabendo de antemão que esse outrem não é quem quer visitar ..como vocês quiseram para vosso e nosso deleite. Obrigado por mais esta amostra desses Açores de que nada conheço.

Abraço.
Carlos

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelo comentário, Carlos. Tenho esperança de que a recente criação de parques naturais em todas as ilhas dos Açores alguma vez se traduza em acções efectivas de protecção da natureza e não apenas em restrições de acesso para impressionar forasteiros.

Um abraço,
Paulo