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28/09/2022

Cárice levitante

Carex leviosa Míguez, Jim.-Mejías, H. Schaef. & Martín-Bravo


Há coisas grandes que nos habituamos a não ver, ou que vemos apenas pelo canto do olho, sem lhes darmos atenção. Parecem-nos já conhecidas, um capítulo já encerrado, e agora apetece-nos ver e apender coisas novas. Até que alguém olha melhor e conclui que houve confusão, que aquilo que está diante de nós é diferente e merece observação atenta. Fica a lição de humildade: sabemos menos do que julgamos saber, e devemos estar sempre disponíveis para testar os limites do nosso conhecimento, mesmo que com isso a nossa vaidade fique machucada.

Existe em Portugal continental e em quase toda a Europa um cárice gigante, de seu nome Carex pendula, morador de bosques ribeirinhos (amiais e salgueirais) e de outros lugares alagadiços. Destaca-se pela envergadura (pode ultrapassar os dois metros de altura) e pelas espigas longas e curvadas, algumas com uns 20 cm de comprimento, todas penduradas do mesmo lado da haste. Considerava-se que essa espécie ocorria também na Madeira e nos Açores — e, pelo menos no segundo arquipélago, ela (ou algo que se fazia passar por ela) não era difícil de observar na generalidade das ilhas. Na Madeira a situação era outra: a espécie (ou alguma sua sósia) sempre foi tida como rara; e o reverendo Richard T. Lowe (1802–1874), primeiro grande estudioso da flora madeirense, achou-a diferente da C. pendula usual e, em artigo de 1833, chamou-lhe C. myosuroides. Contudo, à luz das regras da nomenclatura botânica, esse nome era inválido por já ter sido usado uns bons antes (em 1779) para designar uma espécie totalmente diferente. Ainda assim, alguns autores adoptaram o nome Carex pendula var. myosuroides para as plantas das ilhas, presumindo que a mesma variedade, distinta da versão continental, ocorria nos dois arquipélagos.

E assim decorreram quase dois séculos, até que em 2021 foi publicado o artigo Systematics of the Giant Sedges of Carex Sect. Rhynchocystis (Cyperaceae) in Macaronesia with Description of Two New Species. Apoiados por estudos genéticos exaustivos, os autores concluem que, na Madeira e nos Açores, o que existem são plantas aparentadas com Carex pendula, mas suficientemente distintivas para constituírem espécies próprias, endémicas de cada um dos arquipélagos. A dos Açores ficou a chamar-se Carex leviosa — o epíteto, que talvez signifique levitante, vem do universo de Harry Potter. Assim se reforça a tendência recente de se reconhecerem novos endemismos açorianos: pelo menos uma dúzia nas últimas duas décadas, e há mais a caminho. A flora açoriana, embora menos rica do que a madeirense (o que se explica pela juventude do arquipélago e pela maior distância a que está dos continentes), não é tão pouco diversa como se supunha — estava era mal estudada.

Como ainda não dispomos de leitores de DNA portáteis, é conveniente que, além da divergência genética, haja diferenças morfológicas visíveis. É esse, felizmente, o caso do levitante cárice açoriano, que se distingue do seu primo continental por ter invariavelmente, no ápice das hastes, uma espiga masculina acompanhada por uma feminina (enquanto que o outro só aí tem uma ou duas espigas masculinas), e por as brácteas (os especialistas dizem glumas) serem mais compridas do que os frutos (utrículos para os entendidos), quando na C. pendula são distintamente mais curtas (ver foto).

Também nas preferências ecológicas a Carex leviosa se diferencia da sua congénere continental, já que os lugares por ela frequentados podem não ser especialmente húmidos: qualquer clareira de bosque, seja de faias, urzes ou incensos, lhe pode servir de casa. É uma adaptação ditada pelas circunstâncias, já que em várias ilhas açorianas não existem ribeiras permanentes. No Faial, onde a espécie é abundante em vários locais (por exemplo, numa das vertentes do Cabeço do Fogo), não a vimos em margens de ribeiras torrenciais (o único tipo de ribeiras que há na ilha), mas apenas em bosques comparativamente secos.

14/10/2014

Introdução à caricologia

Carex viridula Michx. subsp. cedercreutzii (Fagerstr.) B. Schmid

As ciperáceas, tal como as gramíneas, são plantas adaptadas à polinização pelo vento. Não dependendo das boas graças dos insectos e de outros bichos, não têm que os atrair nem recompensar os seus serviços, e por isso não produzem néctar nem têm flores apelativas. O género Carex é o mais populoso da família, contando com cerca de 2000 espécies, em geral perenes; dessas, cinquenta fazem parte da flora portuguesa, duas são endémicas dos Açores, e duas outras são endémicas da Madeira. A planta que ilustra este texto, e que foi fotografada na caldeira do Faial, ocorre nos Açores e na Madeira, e é tida por alguns autores como pertencendo a uma subespécie endémica da Macaronésia. O reconhecimento de tal carácter endémico não é contudo unânime, havendo quem considere que Carex viridula subsp. cedercreutzii é sinónimo de C. viridula subsp. oedocarpa, que tem uma distribuição europeia bastante ampla. Se continuarmos a desfiar o rol de sinonímias, verificamos que outra fonte assevera que esta última é o mesmo que Carex demissa, espécie que, de acordo com a Checklist da Flora de Portugal, não ocorre nos nossos arquipélagos atlânticos. Para que a confusão fique perfeita, a mesma checklist informa que nos Açores existe uma coisa chamada Carex oederi subsp. pulchella, que segundo várias autoridades não é senão a Carex viridula.

Um tal labirinto taxonómico ilustra bem as dificuldades do estudo das Carex. Numa primeira abordagem, já ficaremos satisfeitos se pudermos afirmar com segurança que uma dada planta pertence a esse género, deixando a determinação exacta da espécie para gente mais versada na matéria. Falávamos então das flores despojadas de enfeites e de atractivos, e reduzidas àquilo que é essencial para a reprodução. As flores dos Carex são unissexuais e aparecem dispostas em espigas, sendo frequentes os casos em que cada espiga é formada exclusivamente por flores de um dos sexos: nesta foto, por exemplo, vê-se uma espiga masculina encimando duas espigas femininas. No entanto, não é incomum surgirem espigas andróginas, com flores de ambos os sexos, de que é exemplo a espiga central nesta imagem, com flores masculinas no topo e femininas na base. A mesma androginia, embora menos evidente, é ilustrada pela primeira imagem acima, em que as flores femininas já se converteram em frutos. São aliás os frutos que definem o carácter distintivo do género Carex, aparecendo envolvidos por uma cápsula (chamada utrícula) com o formato aproximado de uma garrafa de Mateus Rosé ou de um cantil militar (veja a 2.ª foto em cima e também os exemplos nesta página). Atender à forma peculiar desse «cantil» — se é mais ou menos bojudo, se tem «gargalo» curto ou comprido — é essencial para a determinação correcta da espécie observada.

Além dos frutos, que só surgem com a Primavera já avançada, devemos também prestar atenção à forma e à cor das glumas. Que quer dizer esse palavrão? Trata-se da bráctea modificada que protege cada uma das flores da espiga; em regra, as glumas são acastanhadas e têm uma banda central verde. Particularmente importantes para o diagnóstico são as glumas das flores femininas, que permanecem frescas durante mais tempo (veja exemplos de glumas masculinas na 3.ª foto ao fundo da página e de glumas femininas aqui). Finalmente, há que levar em conta as provas circunstanciais: num género tão versátil como este, a ecologia é um dado importante. As espécies de sítios húmidos ou encharcados são as mais numerosas, mas também há as que vivem em lugares secos, e dentro desta categoria algumas preferem os calcários (é o caso da C. hallerana aí em baixo, fotografada no Horst de Cantanhede) e outras não dispensam os substratos ácidos.

Estas indicações gerais de pouco servem se o leitor não tiver à mão um manual onde possa conferir, para cada espécie, todos estes detalhes. O melhor livro que conhecemos sobre o assunto — o de Francis Rose, com o título Grasses, Sedges, Rushes and Ferns of the British Isles and north-western Europe, ilustrado com desenhos primorosos — não está inteiramente adaptado à nossa flora, mas apanha a larga maioria das espécies que cá ocorrem.


Carex hallerana Asso

30/09/2014

Caldeira do Faial



O visitante que quiser descer à caldeira do Faial não o pode fazer sem autorização, e terá que ser acompanhado por um guia pago. O trilho não é especialmente perigoso nem apresenta obstáculos inultrapassáveis, e está suficientemente calcorreado para dissipar quaisquer dúvidas sobre o caminho a seguir. Quem for ágil que baste e tiver experiência de caminhadas na natureza poucas dificuldades teria em chegar sozinho ao fundo da caldeira, mesmo naqueles dias em que o nevoeiro pudesse momentaneamente perturbar o sentido de orientação. Não foi pois a preocupação pela segurança dos visitantes que levou o Parque Natural do Faial a impor estas restrições de acesso, mas antes a crença de que uma sobrecarga de visitantes e o possível comportamente desregrado de alguns deles poderiam danificar aquele que é o mais precioso reduto de vegetação natural de toda a ilha.

Se em teoria este argumento é convincente, já a prática deixa algo a desejar. Definir um limite diário, semanal ou mesmo mensal de visitantes numa área ambientalmente sensível e sujeita a grande pressão turística é um procedimento adequado e necessário. Mas obrigar cada potencial visitante, ou grupo de visitantes, a pagar os serviços de um guia, quando tais serviços poderiam em muitos casos ser dispensados, é restringir o usufruto da natureza a quem tenha (bastante) dinheiro para isso. E é também um exemplo curioso, embora em pequeníssima escala, de como o Estado se empenha em criar e alimentar um negócio exclusivamente privado e em boa parte supérfluo.

Como acontece em várias outras áreas protegidas tanto nos Açores como em Portugal continental, parece vigorar a ideia de que para salvaguardar os valores naturais de uma certa área basta declarar que o acesso a ela é interdito ou condicionado. Livre de intrusos indesejáveis, a natureza saberá reconstituir-se sem ajuda, regressando à forma primordial que era a sua antes da chegada do bicho homem: isso a que os burocratas do ambiente chamam wilderness. Talvez a gestão pelo abandono seja adequada na caldeira de Santa Bárbara e noutros lugares da ilha Terceira onde o revestimento vegetal pode sem exagero ser descrito como floresta virgem, mas não o é na caldeira do Faial nem em qualquer outro lugar nominalmente protegido da mesma ilha.

Até há trinta ou quarenta anos, o interior da caldeira era usado intensamente para pastoreio de cabras, ovelhas e até de vacas. Nas vertentes mais suaves, a vegetação arbórea está por isso bastante reduzida. O fim do pastoreio vai ditando o adensamento do coberto vegetal, mas a presença de elementos espúrios como as hortênsias (Hydrangea macrophylla), rocas-da-velha (Hedychium gardnerianum) e silvas (Rubus ulmifolius) inviabiliza a regeneração da floresta original. É causa de desgosto e de perplexidade que nem aqui, num local que deveria funcionar como símbolo da conservação da natureza no arquipélago, tenha sido feito qualquer esforço para erradicar as hortênsias. E o fundo da caldeira, antes coberto por um lago que ficou muito diminuído por altura da erupção dos Capelinhos, ameaça agora transformar-se num silvado contínuo.

A importância da caldeira do Faial explica-se de modo simples: nas suas vertentes, que vencem um desnível superior a 300 metros, e também ao longo do seu perímetro, que tem cerca de 7 Km de extensão, encontra-se uma representação quase completa da flora nativa açoriana, com as excepções óbvias daquelas espécies que vivem exclusivamente a baixas altitudes e de outras que não existem no grupo central no arquipélago. Para além dos habituais juníperos, azevinhos, folhados, loureiros, mirtilos e urzes, das multidões de fetos e de musgos, e das grandes asteráceas de floração estival como o patalugo e a leituga, pudemos ver trovisco-macho em abundância e ainda reencontrámos, para grande regozijo nosso, a raríssima alfacinha (Lactuca watsoniana) que só conhecíamos da ilha Terceira.


Ilex perado Aiton subsp. azorica (Loes.) Tutin


Eis uma boa ocasião para remediar uma grave lacuna: apesar de referirmos muitas vezes o azevinho açoriano, nunca aqui o mostrámos, talvez por nunca lhe termos fotografado as bagas maduras, já pintadas de vermelho. Tendo a espera ultrapassado os limites do razoável, contentar-nos-emos com as bagas verdes, e como bónus juntamos uma imagem das flores, que são brancas, pequenas e discretas, mas revelam-se compatíveis com o calendário das nossas estadias nos Açores. O azevinho açoriano, endémico do arquipélago e componente essencial das florestas húmidas de altitude, é uma árvore perenifólia, de copa larga, que pode ultrapassar os cinco metros de altura. Nas zonas de maior humidade, em que as nuvens só se ausentam a custo e por períodos muito curtos, os azevinhos rivalizam com os juníperos na quantidade e qualidade da flora epífita de musgos e fetos a que dão acolhimento. Um dos inquilinos habituais dessas árvores é a língua-de-vaca, um feto endémico dos Açores e da Madeira.


Pico: floresta de junípero (à esquerda), loureiro (ao centro) e azevinho (à direita)

27/09/2014

Lembrando o não-me-esqueças


Myosotis azorica H. C. Watson


Poucas vezes nos referimos aqui aos miosótis, aquelas plantas mimosas de flores azuis, brancas ou amarelas, e folhas cor de alface que lembram orelhitas de rato. É que há muitas espécies parecidas que ocupam habitats semelhantes, e que mal se distinguem; logo o risco de errar na etiquetagem é elevado, apesar da chave detalhada que os redatores da Flora Ibérica prepararam. Porém, o das fotos de hoje, que é endémico dos Açores, não deixa dúvidas: como é muito raro, havendo registo de populações apenas nas ilhas das Flores e Corvo, dificilmente nos deparamos com o problema de o identificar; além disso, tem um porte e folhagem invulgares, muito diferentes dos demais.

Trata-se de uma herbácea perene de montanha, que ocorre em crateras, taludes próximos de cascatas e rochas húmidas entre os 400 e os 600 metros de altitude. Como podem notar nas fotos, é erecta, com as folhas basais em patamares horizontais, as superiores patentes, e uma inflorescência densa no topo da planta, formando uma umbela de flores azuis escuras (cor de indigo; infelizmente as plantas foram fotografadas num dia quente de Agosto, em fim de floração, por isso não mostram bem este detalhe).

Este não é o único miosótis endémico dos Açores: o Myosotis maritima também só existe nessas ilhas. Floresce mais cedo (em geral, até Junho), é muito ramoso mas tem folhas e flores menores do que o M. azorica, e aprecia as reentrâncias das falésias, as rochas costeiras até 50 metros de altitude e a maresia. Ocorre em todas as ilhas e a designação foi-lhe atribuída por Hochstetter (pai) em 1840. Quatro anos depois, H. C. Watson publicou uma descrição do M. azorica, com uma ilustração, na Curtis's Botanical Magazine (página 4122), notando como é diferente das espécies europeias. Para quem já teve o privilégio de observar os dois miosótis açorianos, eles não se confundem, até porque não têm a mesma ecologia. Estranha-se, portanto, que nas páginas da Plant List, portal da responsabilidade dos Kew Gardens, se afirme que Myosotis maritima é sinónimo de Myosotis azorica. Sugerimos que contactem o Jardim Botânico do Faial, onde há exemplares das duas plantas, venturosamente a florir e a frutificar. E, quem sabe, haverá sementes para partilhar.


Myosotis azorica H. C. Watson (fotografado na ilha das Flores)

16/09/2014

A prima da América


Cinzas do vulcão dos Capelinhos
Quem visitar os Açores numa corrida contra-relógio, por ter comprado um daqueles pacotes turísticos de cinco-ilhas-sete-noites, tem de ser criterioso na escolha do que vai visitar em cada ilha. No Faial há-de querer espreitar a grande cratera, visitar a baía da Horta e, num salto à outra ponta da ilha, admirar o negrume lunar do vulcão dos Capelinhos, ou do que resta dele. Sem desfazer dos méritos dessa escolha, propomos-lhe um programa alternativo, que tem a vantagem de servir mesmo para aqueles dias (que são quase todos) em que o nevoeiro e a chuva tornam a paisagem do interior da ilha em coisa que só existe na imaginação. Se insistir em visitar os Capelinhos, saiba que só poderá subir ao farol pagando os 10 euros da entrada no centro de interpretação, que por esse preço há-de querer não apenas contar-lhe tudo sobre o vulcão que celebrizou o local mas fazer de si um verdadeiro perito em vulcanologia. Se não está interessado na lição ou não tem tempo para ela, fique-se — e já não é pouco — com a imagem do farol contra as falésias cor de carvão, despidas por enquanto mas com a vegetação pioneira de tamarizes, faias, urzes e algumas herbáceas a posicionar-se para uma conquista que levará séculos.

Se tivéssemos apenas um dia para visitar o Faial, um dia que condensasse o melhor e o mais proveitoso dos seis dias muito bem preenchidos que lá passámos, então os dois lugares obrigatórios seriam a cidade da Horta (incluindo a praia de Porto Pim) e o Jardim Botânico do Faial. A seguir a Angra de Heroísmo, a Horta é a cidade mais bonita dos Açores, comovente pelos seus aristocráticos sonhos de frustradas grandezas, com grandes armazéns que são só fachada e avenidas amplas que terminam logo depois de começarem. É no Porto Pim, uma baía resguardada por uma península e um monte que é também um vulcão adormecido, que se encontra uma das duas praias do Faial, se por praia entendermos um areal à beira-mar. O monte que se ergue logo atrás é hoje, graças à erosão dos milénios, quase todo formado por areia, e essa crista dunar é nos Açores um habitat raríssimo, permitindo que lá se instalem plantas que quase não existem no resto do arquipélago. Uma delas, que nos Açores só ocorre no Porto Pim e algures na Terceira, é o narciso-das-areias (Pancratium maritimum), tão comum nas praias do continente. Outra raridade é a grafonola, e uma terceira é a Cakile edentula, que hoje ocupa o escaparate.

Foi no Jardim Botânico do Faial que travámos conhecimento com estas últimas plantas, dois dias antes de as reencontrarmos no Porto Pim. Este é o melhor jardim botânico português da actualidade, por ter assumido plenamente que a sua função é estudar, proteger e divulgar a flora da região em que se insere, em vez de reunir uma colecção arbitrária de espécies exóticas. É uma missão educativa do mais alto valor, pois a genuína flora dos Açores, tão obliterada pela omnipresença de pastagens, hortênsias e criptomérias, permanece invisível aos olhos de quase todos os visitantes. Quem percorra os canteiros do jardim, seja qual for a altura do ano, há-de encantar-se com os maciços cor-de-rosa da Scabiosa nitens, um dos mais bonitos e esquivos endemismos açorianos. Árvores, arbustos e herbáceas dispõem-se ordenadamente em recantos que recriam habitats naturais desde as florestas húmidas de altitude até às zonas costeiras. É aí que regressamos a Porto Pim, pois uma pequena duna artifical em local soalheiro alberga amostras das especialidades dessa praia.


Cakile edentula (Bigel.) Hook.


A Cakile edentula não é muito diferente da sua congénere Cakile maritima, que encontramos em toda a costa portuguesa do Minho ao Algarve. Além de terem as mesmas preferências de habitat, ambas são plantas anuais, glabras, de folhas suculentas, com porte prostrado ou ascendente, que raro ultrapassam os 50 cm de altura. Diferenciam-se pelas flores (as da C. edentula são menores), pelo formato dos frutos, e sobretudo pelas folhas. O epíteto edentula, que significa desdentado em latim, alude precisamente às folhas de margens quase inteiras, em contraste com as folhas muito recortadas da C. maritima.

A C. maritima, que é uma espécie europeia, não ocorre nos Açores; a sua substituta C. edentula distribui-se pela América do Norte e pela Islândia e é tida por vários autores como exótica no arquipélago. À luz dos critérios que expusémos na semana passada, esse veredicto parece-nos mal fundamentado e injusto. De facto, a C. edentula é conhecida no Faial desde 1842 — ou seja, desde que se começou a estudar a flora das ilhas. O habitat que ocupa é aquele que por índole lhe convém, e não levanta qualquer suspeita de ter sido indevidamente alterado. Ao invés de boa parte das espécies que se naturalizaram nas últimas décadas, não se tem expandido no arquipélago, muito pelo contrário: fora do Porto Pim só existe na praia da Ribeira Grande, em São Miguel. Ao não ser reconhecida como nativa, havendo fortes probabilidades de o ser, há o risco de que não tenha a protecção que o seu grau de raridade no arquipélago claramente justifica.


Porto Pim visto da estrada do Monte da Guia

13/09/2014

As grafonolas do Porto Pim


Faial: praia do Porto Pim

O cronista Gaspar Frutuoso (1522-1591) faz menção ao Porto Pim no sexto livro das suas Saudades da Terra por ser então o melhor porto das ilhas, excepto quando o vento sudoeste o fustigava. De facto, é uma enseada larga de areia escura, em costa rasa, a formar uma praia extensa como não é frequente encontrar nos Açores. Confirmámos como é batida por ventania, que levanta a areia fina e incomodaria os apreciadores de praia se acaso por lá estivesse algum. No topo do morro que emoldura o porto resta algum do património imóvel da família Dabney na Horta; por perto está uma antiga fábrica, hoje felizmente só museu, de produtos baleeiros e, mais adiante, um centro de interpretação para os turistas aprenderem o que é, e como vive, uma baleia. Ao contrário das praias de pedra viva, ou biscoito, em cujos interstícios encontramos muitas plantas (azorinas, camarinhas, lótus, cubres, miosótis, eufórbias, fetos, etc.) e inúmeros ninhos, as areias de Porto Pim são quase um deserto. Com atenção, porém, descobrimos que mora ali uma planta rara, a que os ingleses chamam beach morning-glory.



Ipomoea imperati (Vahl) Griseb.


Lembra certa trepadeira roxa que é invasora no continente e ilhas, pertence ao mesmo género e tem origem na América trópical e talvez na região mediterrânica. Aprecia sítios expostos junto ao mar, tem hábito rastejante e dá-se bem nas dunas primárias. Poderia confundir-se com a prima Calystegia soldanella, mas a distinção entre elas é fácil até pelas folhas. A grafonola açoriana tem flores em geral solitárias, com duas brácteas sésseis no pecíolo de cada flor, que a mantêm erecta, um cálice de cinco sépalas e uma corola branca tubular, com um centro amarelo ou manchado de púrpura. Abrem ao nascer do sol e murcham na tarde do mesmo dia.

A primeira citação desta espécie nos Açores é de Watson (1843-44) e o registo é precisamente do Porto Pim. Em 1932, Tutin e Warburg encontram-na na ilha do Pico, num só local próximo da Madalena e, em 1973, Hansen e Pinto da Silva referem duas outras localizações, desta vez na ilha Terceira. Para esta escassez há muitas conjecturas. Primeiro, as raízes podem afastar-se até 2 metros do centro da planta mas não são muito profundas, por isso não sobrevivem a temporais que movimentem demasiado as areias na costa; além disso, apesar da proximidade ao mar, esta é uma planta terrestre cujas sementes têm pouca viabilidade se ficarem submersas por um período longo; finalmente, parece que os insectos polinizadores, que utilizam a corola como plataforma de pouso e têm de se empinar, de costas, para lamber o néctar no fundo do cálice, receiam os perigos de uma tal exposição e preferem as grafonolas de cores escuras que lhes dão melhor camuflagem. Se juntarmos a isto o facto de esta planta não se auto-fertilizar, e o infortúnio de as plantas novas não vingarem junto das adultas, entendemos como é pequena a produção de sementes e ineficiente a sua dissseminação. Resta acrescentar que também é rara na Madeira (foi anunciada em 2002 uma população numa praia de Porto Santo) e que, ao que se sabe, ocorre num só local em Cabo Verde.

O nome imperati refere-se ao boticário italiano Ferrante Imperato (1550-1625), viajante incansável e autor de uma Historia Naturale.