21/10/2014

Sabor de hortelã


Mentha cervina L.
Há gestos que nos parecem insignificantes e que desaparecem sem darmos por isso. Ficamos mais pobres e nem notamos. Houve uma última vez em que alguém, no Alentejo, foi ao rio colher uns pés de erva-peixeira para temperar a caldeirada ou a açorda. Tão abundante era ela em rios, ribeiras e charcos, e agora só sobrava aquela mísera amostra. Para o ano nem isso haveria, porque entretanto a barragem começaria a encher. Se quisesse voltar a comer peixe com aquele fino travo de hortelã, teria de ir a Lisboa, às lojas de iguarias gourmet, para comprar a peso de ouro uma magra embalagem de folhas secas.

Mais a norte a história só não se repete porque, com as variações regionais de hábitos culinários, a erva-peixeira (ou hortelã-da-ribeira, outro nome pelo qual a Mentha cervina é conhecida) nunca teve, em Trás-os-Montes, o prestígio gastronómico de que gozou no Alentejo. Daí que na província nortenha as populações espontâneas de Mentha cervina não tenham estado sujeitas à colheita imoderada que, a par da destruição dos habitats, quase levou no Alentejo ao desaparecimento da espécie. Além disso, a degradação ambiental associada às práticas da agricultura intensiva, em especial a eutrofização dos cursos de água, é muito menos grave em Trás-os-Montes do que no sul do país. No que as duas regiões se equiparam é nos efeitos catastróficos da construção das barragens sobre a vegetação que, vivendo ao pé da água, nunca aprendeu a nadar. O enchimento da barragem de Alqueva destruiu talvez os últimos núcleos de erva-peixeira nas margens do Guadiana. E quando, até final do ano, a barragem do Sabor entrar em funcionamento, vão ser afogadas algumas das mais importantes populações da espécie em Trás-os-Montes: a que existe junto à ponte de Remondes (foto em baixo) e todas as outras que subsistiram até hoje nos últimos 60 Km do curso do rio antes de se juntar ao Douro.

Talvez pareça exagerado este lamento por uma simples erva aromática quando tantas outras coisas tidas como mais importantes, entre elas grandes maciços de Buxus sempervirens, para já não falar das árvores e dos campos agrícolas, se perderão com a subida do nível das águas. Mas é esta soma de perdas, pequenas ou grandes, que se chama "destruição da biodiversidade", e todas as parcelas contam no balanço dos prejuízos. Ainda sobram contigentes importantes de Mentha cervina noutras paragens transmontanas, e tão cedo ela não desaparecerá de Portugal, mas a circunstância de não ter qualquer prioridade em acções de conservação, assim como a vulnerabilidade dos seus habitats, indicam que o caminho de diminuição progressiva por ela iniciado não tem retrocesso possível. Em toda a sua área de distribuição, que abrange a Península Ibérica, o sul de França, Argélia e Marrocos, é a mesma má sina que a persegue, a ponto de ela ter sido incluída, como vulnerável, na lista vermelha da IUCN.

Nas inflorescências semelhantes a pompons e até no perfume intenso, a Mentha cervina lembra a sua congénere M. pulegium, popularmente conhecida como poejo, bastante comum de norte a sul do país e também nos Açores. As diferenças estão porém à vista: as folhas da M. cervina são muito mais estreitas, quase lineares, e as suas flores são em geral brancas, enquanto que as da M. pulegium são rosadas ou violáceas. As preferências ecológicas são também distintas: a M. cervina ocupa charcos temporários, margens inundáveis de rios ou leitos de cursos de água temporários; a M. pulegium, sem desdenhar tais lugares, consegue tolerar ambientes mais secos.


ponte de Remondes, rio Sabor

4 comentários :

bea disse...

É mais bonitinha e airosa que o poejo. Tenho pena que esteja a ser desrespeitada no seu habitat.

ZG disse...

Belíssima planta, pouco comum, também conhecida como Preslia cervina!

Rafael Carvalho disse...

Também esta faz parte da minha coleção de aromáticas, sita por sinal no Alto-Douro.
Cumprimentos.

Paulo Araújo disse...

Obrigado, Rafael. Fico a saber, por este seu comentário e por outras notícias que me chegaram, que a planta é mais cultivada por cá do que eu julgava.