27/12/2014

Andaluza à portuguesa


Klasea baetica (DC.) Boiss. & Reut. subsp. lusitanica (Cantó) Cantó & Rivas Mart.


Foi notícia nos jornais que as crianças finlandeses deixarão em breve de aprender caligrafia. Mesmo o acto de anotar pequenos lembretes em papel lhes estará vedado, e cairá aos poucos em desuso: no futuro, toda a escrita será intermediada por aparelhos electrónicos. Os responsáveis por tal medida ficarão na história como visionários e pioneiros — ou então, quem sabe, como idiotas deslumbrados pela tecnologia. É o nosso próprio corpo que se vai tornando obsoleto, à medida que as máquinas se vão apropriando das tarefas que ele poderia realizar. As pernas não são para andar, mas apenas para vencer a curta distância entre a casa e o automóvel. Em vez de usarmos os olhos para ver a paisagem à nossa volta, ficamos debruçados sobre o pobre sucedâneo bidimensional que o smartphone regista. Entupimos os ouvidos com um ruído personalizado a que chamamos música, reduzindo a cidade a um filme mudo a que acoplamos uma banda sonora postiça. Chega a ser estranho que uma tarefa tão morosa e repetitiva como a mastigação ainda tenha que ser realizada pelos nossos próprios maxilares.

Desde o advento dos estudos genéticos que aquilo que se vê, toca ou cheira deixou de ser a principal bitola na classificação das plantas. Contudo, ainda que obrigando a uma grande reorganização das famílias botânicas, os estudos moleculares confirmaram a validade da maior parte dos géneros e espécies estabelecidos pelos métodos tradicionais. Aquilo que os nossos olhos reconhecem de imeadiato como uma Silene ou uma Veronica (só para citar dois dos géneros mais populosos da flora portuguesa) continua a ser uma Silene ou uma Veronica mesmo depois de passar pelo crivo do laboratório. Neste frívolo passatempo de botanizar, ainda vamos podendo confiar na informação fornecida pelos sentidos, até porque, por enquanto, não dispomos de alternativas viáveis, nem no campo nem (no caso de amadores como nós) fora dele. Virá porém o tempo em que existirão máquinas portáteis para ler o código genético de uma planta com a mesma facilidade e rapidez com que numa loja se lêem os códigos de barras dos produtos. Dar nome às plantas num passeio pelo campo será então tão excitante como ver desfilar as compras na caixa de um supermercado. E é garantido que, tendo acesso instantâneo ao nome de todas as plantas, não saberemos de facto o nome de nenhuma, tal como hoje não sabemos de cor o número de telefone de ninguém, nem dos amigos mais chegados. A memória é das coisas mais fáceis de desaprender a usar.

Até 2005, o género Serratula incluía umas sete espécies em território nacional, mas agora só inclui uma, a S. tinctoria, de prados higrófilos de montanha no norte e centro do país. Também por culpa dos estudos moleculares, as restantes seis espécies foram arrumadas no novo género Klasea. De facto, os géneros Klasea e Serratula distinguem-se não apenas geneticamente (têm números cromossómicos diferentes) mas também, para nosso alívio, a olho nu: no primeiro, as hastes são simples, encimadas por capítulos solitários, e as brácteas involucrais são espinhentas; na S. tinctoria, as hastes são ramificadas na parte superior, e os capítulos, que são inermes, aparecem reunidos em corimbos.

A Klasea baetica, que antes se chamava Serratula baetica, está restrita aos calcários do centro e sul de Portugal, à Andaluzia (a que se refere o epíteto baetica) e ao norte de África (Marrocos, Argélia e Tunísia). Apresentando a espécie um alto grau de variabilidade, foram descritas várias subespécies, tendo-nos calhado em sorte uma subespécie que é endémica do nosso país, apropriadamente chamada lusitanica. A distinção entre as subespécies é subtil, e parece ter sobretudo a ver com os espinhos que prolongam as brácteas involucrais. Mesmo a subespécie lusitanica não é isenta de variações, aliás ilustradas nas fotos: as folhas caulinares tanto podem ser pinatífidas (1.ª foto) como inteiras (2.ª foto). Essas oscilações levaram João do Amaral Franco a descrever, no vol. 2 (de 1984) da Nova Flora de Portugal, três taxónes novos (Serratula estremadurensis, S. acanthocoma e S. alcalae subsp. aristata) de validade discutível, que a Flora Ibérica considera sinónimos de K. baetica subsp lusitanica.

Seja qual for o nome correcto, este endemismo português, que é perene, floresce entre Maio e Junho, e tem caules de uns 70 cm de altura, é abundante e fácil de observar em vários locais das serras de Aire e Candeeiros.

7 comentários :

jj.amarante disse...

Talvez a caligrafia consiga sobreviver, no meu blogue a página mais visitada é http://imagenscomtexto.blogspot.pt/2008/07/caligrafia.html logo seguida por outra sobre ideogramas chineses. A seguir vêem os "nomes (de plantas)" seguido por "ainda os nomes (das plantas). E a quinta é "capim dourado", muita gente sente necessidade de saber os nomes das plantas.

Francisco Clamote disse...

Como habitualmente, uma sábia reflexão. Já conhecia a espécie das minhas andanças pela Serra da Arrábida. Curiosamente, nas Serras d'Aire e Candeeiros, nunca a encontrei durante as várias, ainda que breves, incursões que por lá efectuei.

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelo comentário, J. Amarante. Há que reconhecer que o uso generalizado do computador e de outros métodos electrónicos de escrita degradou já muito as nossas capacidades "caligráficas". Talvez a caligrafia venha a sobreviver apenas como uma prática minoritária.

Paulo Araújo disse...

Obrigado pela simpatia, Francisco. É possível que a Klasea baetica não esteja assim tão espalhada pelo PNSAC, mas nos poucos locais onde a avistámos (por exemplo, acima do barreiro do Valvão, na serra de Aire) ela era muito numerosa.

Carlos M. Silva disse...

Olá Paulo e Maria

Continuo a ler-vos e com imenso prazer mesmo que não me tenha alongado em comentários.
E claro ..uma planta mais para o que nunca vi, que se estende de forma quasi infinita!!!
Vou sentindo-me no paradoxo de Zenão ..

E sim, também lera essa pérola finlandeza.
Não que não aceite que a tecnologia nos ajude, mas quando é ela que nos guia sem que possamos dizer 'Alto lá'!..está aí um limite.
Somos 7 mil milhões de indivíduos e todos diferentes mesmo no caso do ADN ser igual.
Posso até entender o lado práctico da letra de imprensa mas a eliminação de uma faceta da individualidade (mesmo que suceda haver casos muito chatos de entender..) é em último caso uma diminuição dos direitos humanos, mesmo naqueles que nunca aprenderam a escrever.
E, acho eu, é também a escrita manual, que nos torna mais tácteis e manobráveis como os dedos que trouxemos da selva para agarrar os objectos do mundo.
Imagino os estudantes finlandezes, frios? talvez nem tanto, a tactearem um rosto ..e só serem capazes de teclar...

Um abraço para vós do Carlos
e espero continuar a ler-vos no próximo ano e a sentir prazer no que podem descrever ..como se o escrevessem com as próprias mãos, sem intermediários.
Bom fim de ano 2014 e ainda melhor para 2015

Paulo Araújo disse...

Olá, Carlos.

As tuas visitas e os teus comentários são sempre muito bem-vindos. Espero que 2015 seja para ti um ano muito feliz. Nós por cá nos vamos mantendo até se esgotar o acervo de novidades.

Realmente, com o fim da escrita à mão, estamos a abdicar de (mais) uma parte da habilidade manual que distingue os humanos dos outros primatas. Engraçado como a evolução tecnológica também pode significar uma involução da espécie humana.

Um abraço,
Paulo

Anónimo disse...

A propósito da caligrafia...

Parece que nao é tão deixada de parte assim.


http://www.abc.es/sociedad/20141203/abci-finlandia-educacion-escritura-mano-201412030753.html