17/02/2015

Um jardim assim (1.ª parte)

Cerastium glomeratum Thuill.
Dizer de uma planta que ela é daninha é um exercício, tantas vezes inconsciente, de antropocentrismo. Se as plantas falassem, não deixariam igualmente de compilar a sua lista de animais daninhos, na qual ocuparíamos, destacadíssimos, a posição cimeira. Em rigor, consideramos que uma planta é daninha quando ela interfere com os nossos interesses ou baralha as nossas expectativas. Um agricultor que semeou trigo não há-de querer uma seara de joio quando chegar a época da colheita. Um jardineiro que plantou com rigor geométrico um canteiro de vistosas plantas exóticas terá o cuidado de fazer uma monda quase diária das ervas oportunistas para evitar que elas estraguem o efeito pretendido. Deveríamos pois deixar de dizer ervas daninhas, o que é um modo de guindar o nosso interesse a valor absoluto, e passar a falar de ervas indesejáveis, entendendo-se que somos nós que não as desejamos num certo local e por razões que nos dizem respeito.

Sendo Portugal o país peculiar que é, estas picuinhices semânticas talvez sejam algo ociosas. Nas últimas dezenas de anos, com a suburbanização galopante e o desmazelo geral do espaço público, ganhou voga um novo conceito de jardim: uma tira de relva com árvores ou arbustos que parecem ter sobrevivido a uma guerra (os seus companheiros mortos não foram chorados nem substituídos), e nada de plantas floridas tirando aquelas que apareçam por sua livre vontade. Os «jardineiros» que, de tempos a tempos, se ocupam desses «espaços verdes» pós-apocalípticos não têm qualquer apreço por plantas ou flores, nem vêm equipados com pás e tesouras: em vez disso, comportam-se como se estivessem numa frente de batalha, trazendo máquinas barulhentas e destrutivas para decepar tudo à sua frente. Assim, como nesses espaços o que há de verde é obra espontânea da natureza, não é sequer apropriado falar de plantas indesejáveis, a menos que todas as plantas o sejam num espaço nominalmente a elas reservado. E, de facto, esta situação absurda vai-se tornando comum em todo o país desde que alguém descobriu que os cuidados de «jardinagem» poderiam ser dispensados se se regassem com herbicida os tais «espaços verdes», desse modo os convertendo em «espaços castanhos».

Porém, como o furor herbicida não chega a todos os jardins desmazelados, e há até sinais de que possa amainar, talvez seja útil aprendermos a reconhecer as plantas que neles se instalam sem pedir licença. Não prometendo nós fascículos regulares sobre o tema, surgirão pelo menos dois, dos quais este acerca do Cerastium glomeratum é o primeiro. Espécie anual, de porte geralmente rasteiro mas podendo chegar aos 50 cm de altura, é popularmente conhecido como orelhas-de-rato, tal como o seu congénere Cerastium fontanum. As duas espécies distinguem-se com dificuldade, apesar de o C. fontanum ser perene, e sendo certo que em jardins e noutros espaços ruderalizados é o C. glomeratum que costuma aparecer. Eis como fazer a destrinça: no C. glomeratum as sépalas estão revestidas por pêlos que ultrapassam claramente o ápice (veja a 3.ª foto acima e também aqui), coisa que não sucede no C. fontanum (confirme aqui). Caracteres úteis mas menos fiáveis para o diagnóstico são o tamanho das pétalas (as do C. glomeratum costumam ser menores e às vezes estão ausentes) e o facto de as inflorescências do C. glorematum serem mais compactas, com pedicelos mais curtos, e contarem com um número maior de flores.

Talvez o leitor ache que o pobre jardim do seu condomínio só serve para envergonhar os moradores com alguma ponta de brio, mas na verdade ele não é destituído de interesse florístico. Espere por Março ou Abril e vai ver que consegue lá observar coisas bonitas como esta.

3 comentários :

bea disse...

Não sei - até sei - que moda é esta de jardins acimentados e apenas com uma tirita de verde.
Bem conheço a planta das imagens (ou as plantas) são ervinhas jeitosas que nascem em todo o lugar e têm a virtude de dar flor.

Ficam bem nuns lugares, mas não noutros. Acho que tenho uma data delas no quintal a confraternizar com as flores e seus afins:).

João Gomes disse...

Viva,

Assino por baixo esta necessidade de irradicarmos o termo "daninho". E não me parece uma questao de somenos...Nesta altura tudo o que contribua para rever o antropocentrismo é bem vindo! No fundo é estender o conceito, que ja hoje é mais aceite relativamente aos animais, ao reino das plantas.

Um abraço

ZG disse...

Belo cerástio - muito comum mas sempre simpático e interessante!