O lince e a sequóia
Imagine-se que, depois de toda a comoção e efervescência mediática com o retorno do lince-ibérico a Portugal, é chegado o momento de soltar na natureza os primeiros linces criados em cativeiro. Com muitos jornalistas, fotógrafos, operadores de câmara, políticos e biólogos a postos para a ocasião, eis que os bichos que saem das jaulas de transporte, algo sobressaltados por tanta gente à sua volta, são simples gatos domésticos e não os desejados linces. Contudo, não se ouve qualquer reparo. Talvez apenas ao ministro pareça que alguma coisa nas orelhas dos felinos agora postos em liberdade (e que rapidamente desaparecem de vista) não bate certo com as fotos que consultou à socapa na Internet antes de vir para a cerimónia. O ministro, porém, acha prudente calar-se: não lhe cabe pôr em dúvida a competência dos técnicos especializados que ajudaram a criar os alegados linces, e que agora se quedam emocionados vendo-os ir à sua vida. Quanto aos jornalistas, estão ali para propagar a boa nova e não para fazer perguntas impertinentes. E assim acontece: televisões, redes sociais, imprensa escrita — toda a comunicação social, mostrando imagens dos gatinhos, garante que os linces estão de volta a Portugal. Como de costume, há um ou outro São Tomé empedernido que duvida até do que vê, mas felizmente ninguém leva a sério esses poucos incréus que tentam refutar a notícia chamando a atenção para o pormenor das orelhas.
Se um tal episódio de ignorância e credulidade colectivas é manifestamente improvável quando se trata de animais (embora seja comum a confusão entre lobos e cães assilvestrados), já o mesmo não sucede com as árvores. De facto, a história que a Câmara do Porto engendrou à volta do abate e substituição da sequóia-gigante do Jardim do Carregal teve um desfecho não menos burlesco do que a história imaginária do lince-que-afinal-era-gato. Nem sequer faltaram jornalistas para amplificar o dislate. Jornalistas que, quando para ele alertados, responderam com o silêncio que as pessoas de bem reservam aos interlocutores inconvenientes.
A Câmara Municipal do Porto (CMP) não trata as árvores com especial carinho, sendo bem mais lesta a abatê-las (por razões que nem sempre se entendem) do que a substituí-las. As tílias que há três ou quatro anos foram cortadas à frente dos jardins do Palácio de Cristal nunca foram substituídas. Pelo contrário, encheram-se as caldeiras com paralelipípedos. Noutros locais da cidade onde se fez o mesmo (e foram muitos) usou-se cimento ou alcatrão, mas o resultado foi idêntico: desapareceram não só a árvore mas o próprio lugar da árvore. E o modo como a CMP lida com as suas árvores em nada se alterou com a mudança do poder político.
Mas houve uma coisa que mudou. Se ao vereador faltam força política, competência ou vontade para melhorar os serviços sob a sua tutela, já lhe sobra argúcia para entender que, muito mais do que fazer as coisas bem, importa noticiá-las bem. Entre nós, o desvelo encenado pela árvore ou pela natureza, mesmo sendo oco (coisa que nenhum jornalista se dá ao trabalho de averiguar), garante sempre boa imprensa. Em vez de se plantarem as árvores que fazem falta nas ruas que a CMP se encarregou de despir, o vereador determina que será plantada uma só árvore, mas essa árvore e os eventos criados a propósito dela hão-de ser notícia do maior destaque.
E as coisas pareciam correr a preceito. A morte da sequóia-gigante (Sequioadendron giganteum) do Jardim do Carregal e a sua longamente anunciada substituição renderam, só no jornal Público, nada menos que quatro notícias ao longo de 15 meses (1, 2, 3, 4). Era o vereador a lamentar a perda de uma árvore classificada (coisa que ela nunca foi), era a promessa de que seria substituída por outra da mesma espécie, era o painel com a foto da falecida em contra-luz, era a colaboração dos alunos de Belas Artes.
O leitor por certo já adivinhou o desfecho da história. No meio de tanta festa e animação cultural à volta da árvore, ninguém se lembrou de olhar para ela com olhos de ver. No lugar da anunciada Sequoiadendron giganteum (sequóia-gigante), o que mora no Jardim do Carregal desde 19 de Março é mais um exemplar de Sequoia sempervirens (sequóia-sempre-verde). A segunda destas espécies, ao contrário da primeira, é frequente nos jardins do Porto e de outras cidades portuguesas. No próprio Jardim do Carregal há mais uns vinte exemplares de sequóia-sempre-verde, alguns deles a meia dúzia de metros do exemplar agora plantado.
As duas sequóias têm folhagens muito diferentes, e não é preciso ser-se um fino conhecedor de árvores para as distinguir. Isso mesmo é ilustrado pelas fotos que se seguem, tiradas esta semana nos jardins do Carregal e da Cordoaria (é no último que vegeta uma das duas únicas sequóias-gigantes do Porto; a outra está no Parque de Serralves).
6 comentários :
Bom dia!
Tantos cursos de jardinagem que se deram por aí e ninguém aprendeu nada com eles. Só serviram para pagar uns ordenados às pessoas implicadas.
Agora mesmo andam a cortar as árvores ali em baixo na rua. Agora já repletas de rebentos. E sem nenhum critério que respeite a própria árvore. Assim como fizeram com os castanheiros da nossa avenida jardim principal.
O que é que podemos fazer para evitar esta falta de respeito pelas árvores, pela natureza?
Obrigado pelo comentário. É arrepiante essa notícia de "podas" no início da Primavera. Já agora, isso passa-se onde?
Em Torres Novas.
Já não é a primeira vez.
«Any fool can destroy trees.» [John Muir]
Adoro este BLOG!
:)
M
Pois, as pessoas gostam muito de cortar árvores... não só em Portugal, evidentemente...
Enviar um comentário