12/01/2016

Conto de Inverno


Avelaneiras (Corylus avellana L.) nas margens do rio Fílveda, Albergaria-a-Velha


A muita chuva dos últimos dias promete que, contra todos os pessimismos, a vida está para durar. O maior inconveniente, numa altura em que os rios realizam a sua vocação em plenitude, é não podermos visitá-los com as águas transbordando das margens. Regressaremos daqui a umas cinco ou seis semanas, quando eles estiverem menos impetuosos, dando tempo para que o amarelo vivo do narcisos se junte ao amarelo pálido das prímulas. Não é em todos os rios que se dá essa feliz combinação cromática, mas há rios em todas as províncias e todos os concelhos deste nosso maltratado território, e quase sempre eles nos dão muito mais do que esperamos. Consideremos, por exemplo, aquela região no centro-norte do país que faz a transição entre o Baixo-Vouga e as serras do interior: Vale de Cambra, Oliveira de Azeméis, Albergaria-a-Velha e Sever do Vouga, são esses os nomes anunciados nas placas de saída da A1 logo a norte de Aveiro. A julgar pelo que vemos ao longo da auto-estrada, todos esses concelhos estão perto de se transformarem em eucaliptais ininterruptos, num processo imparável de reconversão de antigos campos agrícolas que nem sequer poupa os olivais. Em vez de ser desmentida, essa impressão é tristemente reforçada quando nos desviamos da auto-estrada para as vias secundárias. À monotonia do eucaliptal soma-se o desordenamento da paisagem: as estradas fazem de ruas em povoações que nunca começam nem acabam, misturando vivendas, prédios, fábricas, postos de combustível, aviários, restaurantes de berma de estrada, vendas de carros usados. Não é certamente este o cenário ideal para realizar aquele cliché da "comunhão com a natureza" tão glosado em textos de promoção turística. Ainda assim, a câmara de Albergaria-a-Velha, seguindo o exemplo de muitas outras, quis atrair ao concelho praticantes de caminhadas e outros amigos da natureza, e para isso sinalizou vários percursos pedestres. Um deles (PR2) chama-se trilho dos três rios e acompanha o rio Caima e dois dos seus afluentes. Caima é também o nome da empresa de celulose pioneira em Portugal, nascida em Albergaria-a-Velha nas margens deste rio mas entretanto deslocada para outras paragens.

Porque as nossas caminhadas têm um propósito último que não é caminhar, não percorremos na nossa visita do início de Dezembro o PR2 do princípio ao fim, já que ele é extenso (14 Km) e atravessa vastas áreas de eucaliptal. Fizemos o troço do rio Caima junto ao lugar de Palhal, e em Ribeira de Fráguas seguimos durante dois ou três quilómetros o curso do rio Fílveda, partindo do chamado Parque dos Moinhos. O rio Caima pós-industrial apresenta-se despoluído, e ladeiam-no aqui e ali breves manchas de carvalhal, com o cortejo de arbustos e herbáceas habituais em terras do norte: Omphalodes nitida, Linaria triornitophora, medronheiros, folhados, gilbardeiras, fetos variados, etc. Esporádico em clareiras pedregosas, juntava-se-lhes o Anarrhinum longipedicellatum, ou samacalo-arouquense, um portugesíssimo endemismo desta região entre o Douro e o Vouga. Todos esses ingredientes foram repetidos nas margens do Fílveda ou no talude da estrada junto ao Parque dos Moinhos, mas em quantidades mais generosas e reforçados por uma galeria ripícola de altíssimas avelaneiras. Os moinhos desactivados brilhavam como a casa dos sete anões, e as duas pontes de madeira permitiram-nos acesso fácil a ambas as margens. O (impropriamente chamado) hipericão-do-Gerês (Hypericum androsaemum) estava por todo o lado, bem mais abundante do que alguma vez o víramos no Gerês. Uma prímula confundida com o calendário, ou apostada em jogada de antecipação, fazia brilhar uma única flor entre as suas irmãs ainda adormecidas pela invernia.

O rio Fílveda, como tantos outros rios da região, corre encaixado num vale como um segredo ciosamente guardado por um exército de eucaliptos. A maior surpresa de tão grata visita foi sentir que tínhamos obrigação de voltar.

3 comentários :

bea disse...

Que post mais bonito! Texto e fotos. Parabéns.

Rafael Carvalho disse...

Sendo natural de Aveiro, há muito que assisto à eucaliptização da região.
Não conhecendo os locais em causa, fiquei curioso. Quem sabe se se seguirá uma visita.
Mais para o interior, infelizmente tb entre eucaliptos, temos, em Vouzela o paraíso dos rododendros.
Quanto às avelaneiras do texto, são expontaneas ou resultam de antigas plantações? Tenho consciência de que existem avelaneiras nativas no nosso país, contudo ainda não tive o previlégio de presenciar nenhuma em estado "selvagem".
Cumprimentos.

Paulo Araújo disse...

Caro Rafael:

Estas avelaneiras são decerto espontâneas, e aliás a espécie nem é rara junto dos rios e ribeiros da região - veja-se o mapa de distribuição no portal Flora-On. O rio Fílveda merece decerto uma visita, e a cortina arbórea que o envolve consegue mesmo fazer-nos esquecer os eucaliptos.

Saudações,
Paulo Araújo