27/05/2016

Flora endémica do Porto Santo: Vicia costae


Vicia costae A. Hansen


Há plantas que podem tirar um período sabático de vários anos antes de regressarem ao activo. Em lugares sujeitos a secas periódicas, ficam as sementes adormecidas à espera de um bom ano de chuva. Quando ela vem, é tempo de agarrar a vida e renovar o banco de sementes para enfrentar nova travessia do deserto.

No Porto Santo, a chuva este ano tem sido pouca, e escolheu cair toda na semana da nossa visita. O resultado é que não pudemos observar a Vicia ferreirensis, nem ficámos para ver se a chuva ainda foi a tempo de a despertar. Essa ervilhaca, que é endémica de um ou dois picos do Porto Santo (fotos aqui e aqui), só aparece em anos de grande pluviosidade. Podem passar-se anos sem que ninguém a veja: não está extinta, está apenas à espera. Eis o que o padre José Gonçalves da Costa, um estudioso da flora do arquipélago da Madeira e o primeiro a notar o fenómeno, escreveu sobre o assunto em 1946 no Boletim do Museu Municipal do Funchal:

«Parece que as sementes destas espécies têm a propriedade de conservarem a força germinativa durante diversos anos e a prudência de não germinarem em anos de estiagem, em que pereceriam à seca, germinando somente nos anos de chuvas abundantes. Esta tendência para a ombrometria fá-las germinar apenas nos anos em que as águas das chuvas penetraram profundamente no subsolo e há a humidade necessária assegurada para o seu desenvolvimento e frutificação. Esta propriedade ombrométrica torna-as sobremodo cientificamente interessantes! A Vicia portosanctana Menezes [= Vicia ferreirensis Goyder], que descobri na encosta sul do pico da Ana Ferreira em Abril de 1923, ano em que fiz no Porto Santo a minha primeira pesquisa botânica para coleccionar plantas para o herbário do Seminário, parece poder considerar-se, neste ponto, uma espécie típica; porquanto em Março e Abril de 1939, procurei-a cuidadosamente no referido local onde a tinha descobrido, mas não vi o mínimo vestígio dela, de maneira que a reputei extinta. Nos mesmos meses de 1940, depois de chuvas abundantes, observei-a lá em grandes e verdejantes tufos, a fazer latada sobre os moledos ou enleada na Crambe fruticosa L. f. e na Euphorbia piscatoria Ait. "Figueira do inferno".»

Privados de ver a Vicia ferreirensis, foi nosso prémio de consolação encontrarmos noutros picos (Pico Branco, Pico do Facho, Pico do Castelo) a segunda ervilhaca anual que é endémica da ilha, e cujo nome (Vicia costae) homenageia justamente o padre Costa, que foi quem primeiro a descreveu. Gozando de uma distribuição mais ampla, embora sempre exígua dada a dimensão da ilha, esta Vicia costae não será, em anos secos, tão absentista como a sua congénere, até porque, nos pontos mais altos da ilha, a condensação atmosférica compensa a falta de chuva. O padre Costa chamou-lhe Vicia atlantica, mas esse nome foi considerado inválido por ter sido anteriormente atribuído a uma espécie africana. O nome hoje aceite foi proposto em 1974 pelo botânico dinamarquês Alfred Hansen, que exprimiu então a convicção de que a Vicia costae (como lhe chamou) era "sem dúvida uma espécie bem definida e autónoma, relacionada com a Vicia benghalensis".

Comparando as fotos acima com as do Flora-On, o leitor poderá constatar que, na forma e cor das flores e no indumento do cálice, a V. costae e a V. benghalensis são de facto próximas uma da outra. As diferenças, porém, são ainda mais notórias do que as semelhanças: a V. costae tem em geral duas flores por haste, muito raramente três ou mais, enquanto que a V. benghalensis costuma ter cachos de dez ou mais flores. E, ao passo que na V. costae os dentes inferiores do cálice têm metade do comprimento do tubo da flor, na V. benghalensis esses dentes são tão ou mais compridos do que o tubo.

Estar com estas minudências é como explicar, com entediante detalhe, porque é que um cão e um gato, tão diferentes aos olhos de quem vê, são também diferentes à "luz da ciência". Mas o exercício justifica-se quando, em nome de uma ciência que ignora o senso comum, alguém nos quer fazer acreditar que cão e gato são animais da mesma espécie. Dessa arrogância foi culpada a (de resto notabilíssima) Flora of Madeira de J. R. Press & M. J. Short, publicada em 1994, ao considerar a V. costae como sinónimo de V. benghalensis. Nessa obra, a descrição da V. benghalensis (que, embora rara, de facto ocorre na ilha da Madeira) foi suficientemente alterada em relação ao que é usual para abranger também a V. costae. É um facto que, se definirmos intervalos de variação suficientemente amplos, conseguimos meter tudo no mesmo saco — mas, num caso como este, era impossível não notar como as duas espécies artificialmente unificadas caíam sempre em extremos opostos de tais intervalos.

A proposta, felizmente, não fez escola, e hoje em dia (veja-se por exemplo aqui e aqui) ninguém considera que V. costae seja sinónimo de V. benghalensis.


O Pico do Facho, com 516 m de altitude, é o ponto mais elevado do Porto Santo

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