10/06/2016

Avenca redonda

Adiantum reniforme L.

Os tufos de folhas arredondadas a espreitar nas fendas das rochas pareciam, à distância, pertencer a alguma violeta silvestre como as que há no continente. Mas no Porto Santo essas plantas não existem (nem sequer a Viola riviniana, que é comum no continente e na Madeira), e em qualquer caso as violetas costumam crescer no chão e não em taludes rochosos. A culpa de haver apenas folhas e não flores não era da época tardia. Tratava-se de um feto, uma planta que, como é sabido, foi inventada antes de as flores existirem. A estrutura reprodutiva da planta dispensa os bons ofícios dos insectos e demais intermediários, e resume-se aos esporângios que, agrupados em soros, sublinham a traço grosso, pelo avesso, o contorno das folhas.

A disposição dos soros, resguardados ou não por uma membrana protectora (indúsio), é um dado crucial para a correcta identificação dos fetos. O facto de este feto do Porto Santo ter folhas inteiras pode sugerir um parentesco com outros que tenham igual peculiaridade, como o Aspenium hemionitis ou o Asplenium scolopendrium. Contudo, os soros marginais (3.ª foto) mostram que não se trata de um Asplenium, género em que os soros são lineares e ocupam quase todo o verso da fronde (veja-se o Asplenium hemionitis). A estrutura dos soros é em tudo semelhante à da avenca comum (Adiantum capillus-veneris), e daí Lineu ter concluido que estes fetos superficialmente tão diferentes eram de facto primos, arrumando-os por isso no mesmo género Adiantum. Ganhámos assim uma avenca de folhas redondas e grandes (uns 5 cm de diâmetro, com um pecíolo fino e longo que pode atingir os 30 cm), em total contraste com o rendilhado da avenca convencional.

É tradicional considerar os fetos como plantas primitivas, com origem em épocas (o "tempo dos dinossauros") em que a paisagem vegetal do planeta era inimaginavelmente diferente da que é hoje. No entanto, ter uma linhagem antiquíssima não é o mesmo que ser muito antigo. Os fetos e aparentados deixaram de dominar a Terra, mas os que sobreviveram não pararam de evoluir, e as espécies hoje existentes poderão, em grande parte, não ser mais antigas do que a generalidade das plantas com flor. Como poderia ser de outra maneira quando um arquipélago jovem como os Açores tem nada menos que cinco fetos endémicos?

Há fortes indícios, contudo, de que a avenca-redonda (ou feto-redondo, como alguns lhe chamam) é uma relíquia genuína. O seu habitat de eleição são as rochas sombrias e húmidas como as do topo do Pico Branco, único local do Porto Santo onde está assinalada. Na Madeira é bem mais comum, e nas Canárias só está ausente da ilha de Forteventura. O que faz soar o alerta é a sua distribuição global: não existe na Europa, nem no Mediterrâneo, nem na África ocidental. Reaparece, em várias versões (entre elas uma hirsuta, Adiantum reniforme var. asarifolium), em alguns pontos da costa leste do continente africano, estendendo-se a Madagáscar e às ilhas Maurícia e Reunião. Novo salto de sete ou oito mil quilómetros, e volta a surgir (agora como Adiantum reniforme var. sinensis) no centro da China, entre as províncias de Sichuan e Hubei. Tamanhas lacunas fazem supor que, antes da última era glaciar, o Adiantum reniforme gozava de uma distribuição quase planetária. Ainda que o isolamento das populações possa ter levado ao aparecimento de formas regionais distintas, este feto é um improvável sobrevivente de outras eras e merece inteiramente o título de fóssil vivo.

4 comentários :

José Batista disse...

Boa descrição. Contudo, o conceito de "fóssil vivo" é questionado por alguns investigadores. Cada ser vivo que existe, por mais características "antigas" que possua, pertence sempre a uma espécie actual necessariamente diferente daquela(s) com que se parece no registo fóssil, o qual nos fornece sempre um conjunto de características parcelares. Se uma espécie é actual, significa que está suficientemente adaptada para não ter sido eliminada pela selecção natural, ou seja, ela é inevitavelmente um produto da evolução biológica, mais ou menos acentuada, que chegou aos dias de hoje.
De resto, com bem se diz no texto, em arquipélagos jovens como os Açores, há várias espécies de fetos endémicos, o que significa que são espécies biológicas relativamente "jovens" também, mesmo que com características "primitivas", como é a ausência de flor nos fetos.
Há, por isso, quem sugira o abandono na expressão "fóssil vivo".
Compreende-se.

Paulo Araújo disse...

Tem razão, a expressão "fóssil vivo" é, na maior parte dos casos (ou mesmo em todos), usada abusivamente. É uma daquelas simplificações de índole jornalística que se desculpa mais nuns casos do que noutros. Mesmo no caso da Ginkgo bilboba, em que essa expressão costuma surgir, as espécies de Ginkgo de que há registos fósseis são de facto diferentes da única que existe hoje. Algo de semelhante se passa com o género Equisetum - ou, mais precisamente, com as Equisetaceae: trata-se de uma família muito primitiva, mas ninguém sugere que as espécies hoje existentes remontam ao tempo dos dinossauros.

bea disse...

Oh! Muito prazer ao - meu - primeiro fóssil vivo aqui reproduzido e tão bem explicado. O facto de não ser do tempo dos dinossauros por ter sofrido adaptações e nesse sentido ser jovem, não lhe retira valor. É nobre de certeza e acabou! Tem linhagem.

Francisco Clamote disse...

Maravihosas: a planta e a postagem (fotos e texto). Grato.