25/04/2017

Madeira Fern Fest (8)


Asplenium hemionitis (à esquerda), Asplenium anceps (à direita), Adiantum reniforme (em baixo)


As ilhas do mesmo mar sempre arranjam modo de se contaminarem uma às outras, e alguns dos fetos peculiares que vimos na Madeira, por muito entusiasmantes que fossem, não eram para nós novidade, tendo-os já encontrado nos Açores ou no Porto Santo. O que é na verdade injusto, pois a flora pteridófita madeirense, singularizando-se pela sua indisfarçável africanidade, não é inferior à açoriana. Como compensação, e quebrando a nossas regra de mostrar cada espécie uma só vez, recuperamos dois fetos macaronésios de vincada personalidade, desta vez fotografados na Madeira, e condimentamo-los com um terceiro que vale pela raridade, embora seja fácil de confundir com outros muito comuns.

Tanto o Asplenium hemionitis (1.ª foto) como o Adiantum reniforme (3.ª foto) se recusam a obedecer ao figurino habitual dos fetos: cada fronde é constituída por uma peça só, em vez de estar dividida em inúmeros pequenos segmentos. O nome vernáculo feto-folha-de-hera atribuído ao primeiro exprime não só uma óbvia semelhança como também uma real possibilidade de confusão, já que o Asplenium hemionitis pode, tal como a hera, agarrar-se aos muros ou atapetar o chão de um bosque com as suas folhas. Tapete curto, claro está, já que as populações deste feto costumam ser pequenas. E a confusão desfaz-se quando lhe espreitamos as pinturas de guerra no verso das frondes. Presente nos Açores, Madeira e Canárias, o feto-felho-de-hera tem também populações reliquiais na Argélia, em Marrocos e... em Sintra, único local do continente europeu onde a sua presença está assinalada.

O Adiantum reniforme, a que gostamos de chamar avenca-redonda, é fácil de encontrar na Madeira, sobretudo na parte norte da ilha, em muros e fendas de rochas, nem sempre em lugares sombrios. Tendo-o visto e fotografado no Porto Santo, já sobre ele aqui escrevemos.

O terceiro feto do nosso ramalhete, Asplenium anceps (2.ª foto), tem óbvios laços de seiva com o avencão (Asplenium trichomanes subsp. quadrivalens), que encontramos de norte a sul de Portugal continental, tanto em calcários como em xistos ou granitos. Um terceiro feto que só com dificuldade se distingue destes dois é o Asplenium azoricum. Sabe-se, aliás, que o A. anceps é um dos progenitores do A. azoricum, que por sua vez terá dado origem a outras espécies ou subespécies do grupo do A. trichomanes. Muitas vezes podemos separar as diferentes espécies usando um simples critério geográfico: em Portugal continental só existe, que se saiba, o A. trichomanes subsp. quadrivalens. Contudo, se estivermos nos Açores, convém fazermos uma análise menos preguiçosa, já que aí coexistem o A. azoricum e o A. trichomanes, e o problema repete-se na Madeira, onde convivem o A. trichomanes e o A. anceps. (Em ambos os arquipélagos ocorre ainda o A. monanthes, mas nenhum amador de fetos minimamente atento o confunde com qualquer um dos outros três.)

A boa notícia é que o A. anceps até é fácil de destrinçar do A. trichomanes por quem for munido de lupa e levar a lição bem estudada. As pinas médias do primeiro são em geral mais estreitas e compridas do que as do segundo; e, no A. anceps, os soros são rectilíneos, afastados do eixo da pínula de modo que as duas fiadas fiquem bem separadas (foto ao lado ou, em melhores condições, nesta página), enquanto que no A. trichomanes os dois soros basais de cada pínula (pelo menos esses) são claramente curvados, e as duas fiadas de soros estão muito próximas uma da outra (fotos nesta página ou nesta).

Como patriarca de uma linhagem de fetos bem disseminada na Macaronésia e na região mediterrânica, o A. anceps acusa o peso da velhice e mostra-se menos adaptável às mudanças do mundo do que os seus descendentes. Embora tenha sido reportado nos Açores, receia-se que esteja extinto no arquipélago. Presente em quatro das ilhas Canárias, em três delas (Tenerife, La Gomera e El Hierro) só se conhece uma população em cada ilha, sendo um pouco melhor a situação na ilha de La Palma. Na Madeira, por contraste, está amplamente distribuído no norte da ilha em lugares húmidos e ensombrados, mas não parece ser tão abundante como afirmam J. R. Press & M. J. Short no livro Flora of Madeira (National History Museum, London, 1994).

19/04/2017

Barbusano

Quem aporta à Madeira sente a aragem de um lugar quase africano, o receio das escarpas assombrosas do litoral, o fascínio pelos delicados bordados e o regalo nos pitéus de milho e de peixe-espada. Mas terá de se entranhar nas montanhas para conhecer a ilha a que Camões se refere, no Canto V de Os Lusíadas, através do discurso de Vasco da Gama que, não tendo passado pela Madeira, narra de facto a experiência do próprio poeta:

Passámos a grande Ilha da Madeira,
Que do muito arvoredo assi se chama;
Das que nós povoámos a primeira,
Mais célebre por nome que por fama.
Mas, nem por ser do mundo a derradeira,
Se lhe aventajam quantas Vénus ama;
Antes, sendo esta sua, se esquecera
De Cipro, Gnido, Pafos e Citera.

Foi pela exuberância vegetal que a Madeira venceu, na comparação de Camões, as ilhas gregas, componentes famosas da civilização helénica. O arvoredo da ilha é ainda hoje notável, mas algumas espécies características dos bosques de laurissilva tornaram-se raras, como o imponente barbusano (ou barbuzano), uma laurácea de copa arredondada e densa, que pode atingir os 25 metros de altura.


Apollonias barbujana (Cav.) Bornm.


Tivemos sorte por, em Dezembro, termos encontrado flores frescas, sendo elas mais dadas a surgir na Primavera. São minúsculas, esbranquiçadas ou verdes, mas as inflorescências em panícula são muito vistosas. Depois delas, vêm umas bagas com feitio de azeitona mas de pé longo, que amadurecem escuras. As folhas ovaladas e glabras, de um verde lustroso, exibem por vezes umas protuberâncias que lembram estruturas semelhantes nas pistácias ou os bugalhos dos carvalhos. No barbusano, estas verrugas são casinhas de insectos feitas de folha, onde eles se resguardam enquanto se alimentam de seiva sem, aparentemente, comprometerem a saúde geral e a sobrevivência da planta.

Endémica dos arquipélagos da Macaronésia (talvez extinta no Porto Santo), da Apollonias barbujana há registo, na ilha de Gomera, de uma segunda subespécie, com folhas mais largas e cuspidadas. O nome do género é dedicado à divindade Apolo, uma das mais intrigantes da mitologia grega: filho de Zeus, com uma irmã gémea (Artemis), é o ideal de beleza atlética e da juventude; reconhecido como deus da poesia e da música, além de ser um oráculo poderoso, tem como símbolo o loureiro ou, se quisermos, qualquer outra árvore da mesma família.

O género Apollonias inclui cerca de dez espécies de árvores e arbustos perenes, embora estudos recentes proponham que o género se limite a uma espécie, a que ocorre na Madeira e Canárias, sendo as outras transferidas para o género Beilschmiedia.

11/04/2017

Madeira Fern Fest (7)


Dryopteris aitoniana Pic. Serm.

Os fetos são para quem aprendeu a apreciar a simetria e a simplicidade, e a valorizar os detalhes que marcam a diferença. Fazem um apelo austero ao intelecto, em vez de, como as plantas com flor, seduzirem pela sensualidade do colorido e do perfume. Não foram feitos para estes tempos de atenção distraída e borboleteante, em que somos joguetes de um fluxo ininterrupto de estímulos básicos. Contudo, quem se interesse por plantas deve tentar familiarizar-se com os fetos, pois são muitos os bons encontros que perde se não conseguir reconhecê-los. Se não nos quisermos entregar a um panteísmo acéfalo, convém sabermos distinguir as árvores que compõem uma floresta: nem tudo o que é verde é ouro, e um carvalhal não é o mesmo que um eucaliptal. Ou, falando das ilhas, é imperdoável confundir a laurissilva com um emaranhado de vegetação infestante, como acontece nesta triste foto de São Miguel. Depois de garantirmos que não cometemos tais erros de palmatória, devemos passar ao estádio seguinte, em que somos capazes de discernir os ingredientes que fazem a singularidade de um pedaço de natureza. É enriquecedor saber que os fetos da mágica laurissilva madeirense são, em grande parte, diferentes dos que vemos noutras paragens, e que alguns deles só existem na Madeira.

Juntando-se à Arachniodes webbiana e ao Polystichum falcinellum, a Dryopteris aitoniana é o terceiro feto habitante da laurissilva e endémico da Madeira que aqui apresentamos (um quarto feto endémico, Ceterach lolegnamense, é de pequeno tamanho e prefere os muros soalheiros do sul da ilha à humidade umbrosa da laurissilva). A sua filiação no género Dryopteris é denunciada pelos indúsios reniformes que protegem os esporângios (compare a última foto em cima com esta ou esta). De resto, o formato geral das frondes, o seu tamanho (até 120 cm de comprimento) e a sua disposição em tufos pouco ajudam a diferenciá-la das suas congéneres. Na Madeira ocorrem três espécies adicionais de Dryopteris, todas elas frequentes na laurissilva e até em plantações florestais: D. aemula, D. affinis subsp. affinis e D. maderensis (esta última quase sósia da D. azorica). Se atendermos ao recorte das pínulas (divisão de segunda ordem das folhas), muito mais pronunciado na D. aemula e na D. maderensis, só com a D. affinis se pode a D. aitoniana razoavelmente confundir; e aí as pínulas basais, em regra bastante compridas na D. aitoniana (5.ª foto acima) e muito curtas na D. affinis (veja aqui), ajudam a dissipar as últimas dúvidas. Além disso, a D. aitoniana apresenta folhas mais rígidas e de um verde mais pálido, e tem poucas escamanas na ráquis. Ao segundo dia das nossas deambulações pelas levadas madeirenses já a reconhecíamos ao longe.

Calcula-se em 38 o número de espécies (e subespécies) de Dryopteris que ocorrem na Europa, na zona mediterrânica e na Macaronésia. Estão ligadas por uma complexa teia de relações familiares que têm na hibridação e poliploidia a sua principal génese. Daí que a diferenciação entre taxa ou a sua própria delimitação não sejam assuntos simples. A D. aitoniana tem fortes semelhanças com a Dryopteris oligodonta, endémica das Canárias, motivo para algumas listagens reportarem a presença de uma ou de outra no arquipélago errado.

Falta explicar por que razão o nome do feto madeirense homenageia o primeiro director dos Kew Gardens, William Aiton (1731–1793), que nunca pôs os pés na Madeira nem, que se saiba, alguma vez saiu da Grã-Bretanha. Aiton foi o autor de um Hortus Kewensis (1789) descrevendo 5600 plantas cultivadas em Kew e originárias de muitas partes do mundo. Para muitas dessas espécies, Aiton foi o primeiro a dar-lhes nome científico. Sob o nome, que hoje nos parece absurdo, de Polypodium elongatum, o feto madeirense aparece na pág. 465 do vol. 3 dessa obra. Pelo menos supõe-se que é esse o feto que se pretendia nomear, embora a descrição seja demasiado abreviada e se diga erradamente que ele ocorre também nos Açores. O italiano Rodolfo Pichi-Sermolli, que em 1951 reconheceu a validade da espécie e a transferiu para o género Dryopteris, não pôde conservar o epíteto elongata por ele já ter sido usado noutra espécie do género, e optou pelo epíteto aitoniana para assim registar a prioridade de Aiton.

05/04/2017

Leitugas ao vento

Aos lusitanos, habituados a manter as costas protegidas pelo resto da Península Ibérica, incomodam à vez vários ventos, sejam os de oeste, salpicados de água e maresia, os vindos de Espanha, secos e tórridos no Verão, as ventanias densas de areia do norte de África ou as aragens frias que sopram da Galiza. Na meia idade, basta que uma leve brisa de algum destes quadrantes nos desarranje o penteado para nos doerem os ossos. Anos depois, nenhuma gelosia se entreabrirá sem que soe o alerta de arrepios fatais. Com uma tal experiência e sabedoria eólicas, somos os primeiros a dar razão a muitas plantas que se recusam a colonizar parte da costa da Madeira, ou às que, resignadas a suportar os inevitáveis rigores climáticos a meio do Atlântico, ali mudam de forma e de feitio.

Poderá ter sido a necessidade de adaptação a vários habitats severos a origem de tantos endemismos da ilha da Madeira no género Sonchus. Os que hoje aqui se mostram florescem no Outono e Inverno, por isso em Dezembro encontrámos ainda flores viçosas. Apresentam poucas semelhanças com as espécies deste género que conhecemos na Península Ibérica, sem espinhos, penugem ou folhagem rugosa.


Sonchus ustulatus Lowe subsp. ustulatus



Sonchus ustulatus Lowe subsp. maderensis Aldridge


Estas são herbáceas perenes com uma só haste floral em cuja ponta balança uma cimeira de inflorescências amarelas. O aspecto mais bonito é, porém, a folhagem em roseta, tendo uma delas folhas carnudas e penatissectas, de lobos lanceolados e dentados, e a outra lobos laterais ovados ou rômbicos, por vezes sobrepostos, e de margens quase inteiras. Vivem em locais rochosos da costa: o S. ustulatus subsp. maderensis, descrito em 1976 e que também ocorre em Porto Santo e Desertas, precisa da humidade da costa norte da ilha da Madeira; o S. ustulatus subsp. ustulatus, que Lowe nomeou em 1831, prefere nichos secos e soalheiros da costa sul.

Sem abrigo que lhes valha, não se estranha o porte rasteiro de ambos, nenhum se elevando além dos 50 cm. Ficam, claro, muito aquém dos 2 metros de altura que pode atingir o S. pinnnatus (outro endemismo da ilha da Madeira, que ocorre em escarpas de montanha) ou dos 4 metros a que ascende o S. fruticosus (mais um endemismo, comum em ravinas e recantos húmidos de laurissilva no interior da ilha). Apresentam, parece-nos, algumas semelhanças com Sonchus da costa do norte de África, como o S. masguindalii ou o S. pustulatus, este de rochedos calcários costeiros de que se conhecem também populações em Almería, Espanha.