15/01/2020

Águas salobras


Paul da Praia da Vitória, ilha Terceira
Que têm em comum a Praia da Vitória, na ilha Terceira, e a Fajã dos Cubres, em São Jorge, além de ambas se situarem em zonas costeiras do grupo central dos Açores? A primeira é uma cidadezinha aprumada, com ruas pedonais em calçada portuguesa preenchidas com lojas, cafetarias, bancos, restaurantes, pequenos hotéis, igrejas, jardins e um mercado, rematada por um passeio à beira-mar decorado com azulejos poéticos e com vista para um movimentado porto de recreio. A segunda, servida por uma única loja polivalente que faz de café-restaurante-mercearia, resume-se a uma dúzia de casas térreas ocupadas sazonalmente, de onde apenas sobressai a torre da igreja. Mesmo que tenhamos descido à fajã de automóvel e várias dezenas de turistas tenham feito igual, as impressionantes falésias revestidas de verde e a escala diminuta da presença humana dão uma medida da nossa fragilidade e induzem uma sensação de aventura e isolamento. A Praia da Vitória, por contraste, sugere uma vida de conforto burguês isenta de inquietações.


Lagoa da Fajã dos Cubres, ilha de São Jorge
Acontece que nas duas localidades existem lagoas de águas salobras, um tipo de habitat que de resto está quase ausente dos Açores e que serve de abrigo a uma interessante vida aquática. O Paul da Praia da Vitória, apesar de aparentemente separado do mar por extensos aterros, uma estrada e várias estruturas portuárias, ainda mistura água doce com salgada, pois a água das marés chega-lhe pelos fundos aproveitando a porosidade do terreno. Já a lagoa das Fajã dos Cubres está apenas a 50 metros do mar, sendo essa a largura, no ponto mais estreito, da língua de terra e detritos rochosos que lhe define o contorno. Embora o Paul da Praia esteja muito artificializado, nas suas margens ocorre uma das espécies nativas mais raras dos Açores, a ciperácea Bolboschoenus maritimus, que em todo o arquipélago só existe na Terceira e, nessa ilha, só na Praia da Vitória. E há no Paul pelo menos duas espécies vegetais em comum com a Fajã dos Cubres: o Juncus acutus, que forma grandes tufos de folhas agressivamente pontiagudas; e a Ruppia maritima, uma planta submersa de distribuição cosmopolita, semelhante a uma gramínea, que nos Açores só existe na Terceira e em São Jorge, precisamente nestes locais.


Ruppia maritima L.


Ao contrário do que pode sugerir o epíteto maritima, esta Ruppia não vive no mar, mas apenas em zonas costeiras tais como estuários, lagoas e salinas. É um habitat por natureza descontínuo e daí que a planta tenha uma distribuição muito fragmentada. No entanto, ela está espalhada por todos os continentes habitados, desde regiões de clima fresco até zonas tropicais, conjecturando-se que tenham sido as aves migratórias, ao comerem os peixes que engolem os frutos da planta, o principal veículo da sua disseminação. Planta de ciclo anual mas florescendo e frutificando ao longo de praticamente todo o ano, não parece ter dificuldade em manter largos contigentes nos locais onde está instalada. Na lagoa da Fajã dos Cubres forma extensas pradarias submersas, e de facto ela é aí a única planta que vive inteiramente na água. Uma observação atenta permite detectar os típicos caules articulados, mas para inspeccionar inflorescências e frutos é indispensável pescar algum exemplar (que depois deverá ser devolvido à água). Os frutos são pequenas drupas dotadas de pedúnculos muito longos (as fotos em baixo mostram uma inflorescência); noutras espécies do género como a Ruppia cirrhosa, mas não na R. maritima, esses pedúnculos costumam contorcer-se em espiral.

Os mamíferos que vivem no mar têm de vir à tona para respirar. Não é esse exactamente o caso da Ruppia, mas esta planta só consegue reproduzir-se porque literalmente cria bolhas de ar. Tais bolhas envolvem as anteras, transportando o pólen para a superfície. Em seguida o pedúnculo cresce, e com isso os estigmas assomam também à superfície para receberem o pólen. Noutros casos, em que a autogamia é prática corrente, a inflorescência prescinde da ascensão à superfície e tudo se passa na intimidade de uma bolha de ar que envolve anteras e estigma de uma mesma flor.

P.S. Para algumas importantes correcções a este texto, leia-se o comentário aqui deixado por Duarte Frade.


Ruppia maritima L.

4 comentários :

Duarte Frade disse...

É muito bom ver finalmente a Ruppia a receber atenção neste vosso blog fantástico, mas o artigo tem alguns erros. As fotos com estruturas reprodutivas mostram apenas inflorescências, não frutos. Cada inflorescência tem 2 flores opostas. As bolinhas avermelhadas são as anteras, e as partes esverdeadas os carpelos. Na Terceira, a Ruppia está citada também do Paul da Pedreira do Cabo da Praia, mais a sul, e do Paul do Belo Jardim, que outrora formou parte da mesma zona húmida que o da Praia da Vitória.

Apesar do género ocorrer de facto em todos os continentes habitados, nem a Ruppia maritima nem a Ruppia cirrhosa são cosmopolitas. Ambos os nomes foram (e são) usados de forma incorrecta em diferentes continentes para diferentes espécies, mas os estudos genéticos, citológicos e morfológicos mais recentes mostraram que a diversidade do género é muito maior. Ambas as espécies têm na verdade distribuições relativamente restritas. De resto, o nome correcto da Ruppia cirrhosa (no sentido habitual do nome) é Ruppia spiralis - ver Ito et al, 2017 e den Hartog & Triest, 2020.

Estou a estudar a evolução do género como tema de doutoramento, e temos aqui no CCMAR várias novidades taxonómicas para publicar em breve, incluindo sobre as populações ibéricas e da Macaronésia.

Paulo Araújo disse...

Caro Duarte Frade:

Muito obrigádo pelo comentário e pela correcção. Corrigi a asneira mais séria, mas quanto ao resto o melhor é que as pessoas leiam o seu comentário (cuja existência fica assinalada em P.S.).

Também encontrámos a Ruppia no Paul do Belo Jardim (o registo consta do Flora-On Açores), mas preferi não falar disso porque o grau de artificialização (e de destruição) desse Paul é muito pior do que no da Praia da Vitória. Já agora, o que existe nos Açores é mesmo Ruppia maritima ou o nome correcto será outro?

O Frade disse...

Não posso dar muitos detalhes antes de estar tudo publicado, mas posso dizer que quer as plantas dos Açores não são Ruppia maritima s.s. Morfologicamente, esta é na verdade uma população algo bizarra... Seria possível ver fotos das plantas do Paul do Belo Jardim? Estive lá no Verão, mas não pude confirmar a presença da espécie porque não desci do observatório poque não quis assustar as aves que lá estavam.

Paulo Araújo disse...

Infelizmente não fotografei a Ruppia do Paul do Belo Jardim. Presumi que fosse igual à do Paul da Praia da Vitória (que já tinha fotografado) e não "pesquei" nenhum exemplar. Em qualquer caso, no Belo Jardim só as vi naquela lagoazita rectangular, que era também o único sítio onde havia água... Como se trata de um habitat obviamente reconstruído, acho muito plausível que a Ruppia que lá existe tenha sido trazida do Paul da Praia. (Das fotos da Ruppia aí em cima, as três primeiras são de São Jorge e as três últimas são da Praia da Vitória.)

Quando a Ruppia dos Açores tiver nome, podia mandar-me a informação? Gosto de estar a par dessas novidades - até para manter o Flora-On Açores actualizado.