Perpétuas de São Lourenço
Voar na TAP do Porto para a Madeira, com partida às seis da manhã e chegada antes das oito, rouba-nos uma noite de sono mas compensa-nos, em circunstâncias normais, com um dia extra para passear na ilha. No dia 1 de Maio, porém, ainda havia, a pretexto da pandemia, recolher obrigatório às seis da tarde e encerramento do comércio às cinco. No dia seguinte, tendo o vírus comunicado às autoridades regionais uma mudança no seu horário de actividade, a interdição de circular ou permanecer no espaço público passaria a vigorar apenas a partir das onze da noite. Fazer o trilho da Ponta de São Lourenço pareceu-nos um bom modo de aproveitar, no dia da chegada, as quatro ou cinco horas de liberdade que nos restavam após o almoço. Com o andar vagaroso e as muitas paragens para fotografar plantas, ficámos a mais de 1 km da meta — noutro regresso faremos o resto do caminho. Já depois das 17h, e antes de nos metermos no carro para o regresso, ainda chupámos uns gelados, arriscando o vendedor uma repreensão ou multa pela patrulha da GNR que por ali rondava. Destes tímidos assomos de rebeldia se faz a coragem de um povo manso.
Apesar do seu aspecto desértico, não faltam à Ponta de São Lourenço motivos de interesse botânico, e são várias as plantas exclusivas deste acidentado apêndice rochoso no extremo oriental da Madeira. Um exemplo são as vistosas estreleiras, diferentes das do resto da ilha pela forma compacta (em "almofada") e pelas folhas carnudas. O mesmo porte agachado, óbvia adaptação ao habitat ventoso e agreste, é assumido pela perpétua-de-São-Lourenço, um arbusto de folhas acetinadas com capítulos de flores castanho-purpúreas, muito escuras, rodeadas por brácteas brancas, papiriformes. De seu nome Helichrysum devium, é muito semelhante ao Helichrysum melaleucum, presente no Porto Santo e na Madeira e frequente nessas ilhas numa grande diversidade de habitats. Contudo, os dois congéneres distiguem-se facilmente pelo porte (o Helichrysum melaleucum é, em geral, bem mais alto e com ramificação mais aberta), pela folhagem (as folhas do H. devium têm três nervos longitudinais - ver 2.ª foto acima - e as do H. melaleucum só têm um) e até pelo local onde moram (o H. devium só ocorre na Ponta de São Lourenço e falésias costeiras próximas, lugares esses que o H. melaleucum não frequenta).
Não sendo difícil de observar em São Lourenço ao longo do trilho, o Helichrysum devium não é de modo nenhum abundante, e só avistamos os primeiros exemplares depois de caminharmos umas boas centenas de metros. O seu período de floração é curto, decorrendo entre Março e Abril, mas no dia 1 de Maio, com a maioria das plantas frutificadas, ainda algumas flores se deixaram fotografar. Uma segunda espécie endémica do género, Helichrysum obconicum (foto em baixo), que se distribui mais amplamente pela ilha, também se encontra aqui e ali na Ponta de São Lourenço, acontecendo por vezes as duas perpétuas crescerem lado a lado. Pena que a floração das duas esteja desfasada: a do H. obconicum é outonal, com isso se perdendo a oportunidade de contrastar as suas flores douradas com as flores negruscas do H. devium.
1 comentário :
Beleza, o que vêem, o que dizem, o que fazem. O que nos transmitem. Obg
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