A finura dos fetos
A floresta endémica açoriana é uma esponja mergulhada num caldo de nuvens. E as nuvens, em vez de serem aquelas brancas manchas etéreas num céu azul, são cinzentas, espessas, quase sólidas, carregadas de água; não precisam de se esfarelar em chuva para nos encharcarem os ossos. E, naqueles raros intervalos de bonança em que as nuvens se ausentam e o céu se torna visível, percebemos que o solo continua empapado de água e que as galochas são a única escolha sensata de calçado para quem se aventure entre o arvoredo.
Como conseguem as árvores, arbustos e herbáceas aguentar rega tão persistente? São quase anfíbias, de tal modo desenvolveram uma predilecção por meio tão aquoso. Com excepção da criptoméria — que, plantada em extensos povoamentos mono-específicos, substituiu, na maioria das ilhas, a floresta original —, são poucas as árvores exóticas que toleram tal regime hiper-húmido. No Pico, os muitos pinheiros que se plantaram na encosta noroeste da montanha estão a morrer aos poucos, dando lugar a uma floresta nativa em franca regeneração. Com o vagar paciente de quem dispõe de todo o tempo do mundo, a natureza vai corrigindo as asneiras dos homens.
Os cedros-do-mato (Juniperus brevifolia), azevinhos (Ilex perado subsp. azorica), urzes (Erica azorica), sanguinhos (Frangula azorica), loureiros (Laurus azorica) e troviscos-machos (Euphorbia stygiana) que compõem a floresta nativa mergulham as raízes não propriamente em solo firme mas em grandes almofadões de musgão (Sphagnum). Há muitos fetos que se acolhem no bosque, com predomínio, entre os de maior porte, da Culcita macrocarpa (feto-do-cabelinho) e de diversas espécies de Dryopteris. Mas os fetos de menor dimensão (Polypodium azoricum, Elaphoglossum semicylindricum, Trichomanes speciosum) optam, na maioria das vezes, por se empoleirarem em árvores. Muitas delas têm um revestimento de tal modo espesso de fetos e de musgos que não fica um palmo de tronco à mostra.
Nessas florestas, os fetos epífitos mais abundantes, mas menos conspícuos por causa da sua pequenez, são os do género Hymenophyllum, de que ocorrem duas espécies nos Açores: H. tunbrigense e H. wilsonii. São fetos translúcidos, com frondes de 3 a 4 cm de comprimento, muito finas, da cor da azeitona. Formam um rendilhado muito típico que, nas árvores, fica pendente dos ramos ou da base dos troncos. O H. tunbrigense é de longe o mais frequente dos dois, enquanto que o H. wilsonii tem tendência a restringir-se, em cada ilha, às altitudes mais elevadas. É raro encontrar o segundo sem que o primeiro lhe faça companhia, e por isso se torna importante saber diferenciá-los. A distinção entre eles pode fazer-se à vista desarmada, porque o H. tunbrigense tem frondes planas, com divisões relativamente largas, e o H. wilsonii tem-nas dobradas longitudinalmente (fazendo lembrar as águas de um telhado), com divisões estreitas. Para uma identificação mais segura, porém, a lupa ou a macro-fotografia são indispensáveis: a diferença crucial está nos indúsios (membrana ou cápsula que protege os esporângios), que são redondos e fimbriados no H. tunbrigense (fotos abaixos), e alongados e de margens lisas no H. wilsonii (fotos acima).
1 comentário :
A "finura" da escrita e das fotografias, as geografias que fico a conhecer. Um abraço VERDE para vós, nesta época de intensos mas vagamente perigosos pensamentos. Conservem-se!
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