Nas montanhas, para sempre
Para alguns, a separação pelo género das crianças nas escolas primárias (e secundárias) é uma memória penosa de um tempo de preconceito, ignorância e má pedagogia. Não havia ciência, social ou psicológica, que justificasse uma tal segregação, mas muitos pais apreciavam as redomas em que então viviam as suas filhas, e não hesitavam em as resguardar em colégios internos, geridos por religiosas de rédea firme e doutoradas em castigos. Era tudo pelo bem da família, séria e virtuosa. Enquanto isso, muitas crianças noutros mundos, ditos incivilizados, viviam felizes a partilhar a escola, o ginásio, o rio, a pesca, os passeios de barco, a Coca-cola ou o sorvete ao fim da tarde, a ida ao pão de madrugada, o chapinhar na chuva grossa dos trópicos, os dias quentes e sonolentos na rede, os filmes à beira-mar. Não consta que fossem menos dotadas, ou tenham sido desafortunadas por essa infância menos vigiada.
Vem este comentário a propósito das plantas dióicas, isto é, aquelas em que as flores femininas estão em plantas distintas das masculinas. Essa separação parece desvantajosa, na capacidade reprodutiva e de disseminação, relativamente às outras plantas, sejam elas monóicas (em que cada planta gera flores femininas e masculinas, mas estas são distintas) ou com flores hermafroditas (reunindo os dois tipos, a morfologia mais frequente). Senão vejamos: (a) Não sendo possível a auto-polinização, as plantas dióicas estão menos bem preparadas para uma falha na provisão de polinizadores. (b) Só parte da população consegue produzir frutos. (c) E, sobretudo, apenas as viagens dos polinizadores das flores masculinas para as femininas permitem gerar sementes, sendo essencial que haja plantas dos dois tipos suficientemente próximas. Apesar de todos estes entraves, as espécies dióicas não desapareceram do planeta e, por vezes, até mantêm populações robustas. O que fazem para mitigar o impacto das desvantagens que listámos?
Alguns estudos revelam que as plantas dióicas têm de facto algumas cartas na manga. Por exemplo, são em geral perenes e florescem mais precocemente, isto é, demoram menos tempo a tornarem-se adultas. Desse modo, estão disponíveis para a reprodução durante mais tempo, há mais plantas a participar no processo e, talvez mais importante, produzem-se sementes antes que algum azar aconteça — estatística de oportunidades que lhes é decerto favorável. Além disso, não são caprichosas quanto ao tipo de polinizador, e estes são incentivados, e devidamente recompensados, a moverem-se das flores masculinas (em geral maiores e em arranjos mais densos) para as femininas (em indivíduos menos floridos). Os frutos, de várias sementes, são carnudos e apreciados por pássaros, que dispersam as sementes de barriguinha cheia por longas distâncias. É tanto o engenho, que até parece que as plantas, sempre tão caladas e sossegadas, passam o tempo a investigar, a experimentar e a resolver eficientemente estes problemas difíceis de sobrevivência.
A planta dióica que vos mostramos hoje é uma descoberta recente. Na semana passada, de muito calor e pouca brisa, refugiámo-nos numa montanha alta em Ourense. Peña Trevinca ultrapassa os 2100 metros de altura e, quase no cimo, o tempo estava fresco e havia ainda muitas plantas em flor. Trevinca lembra a serra da Estrela, mas parece que lá neva mais e por mais tempo, e por isso há ainda alguns habitats bem conservados.
Vimos dezenas de exemplares em flor de Gentiana lutea, Silene ciliata, Eryngium duriaei e Campanula hermini, muitos tufos do feto Cryptogramma crispa, e mais umas tantas preciosidades que nos habituámos a ver na serra da Estrela. E em locais mais secos, a formar tapetes, estava a Antennaria dioica, uma asterácea minúscula (tem uns 20 cm de altura) com folhas basais acinzentadas e tomentosas. A floração já ia adiantada, e as fotos não ilustram bem as diferenças entre os dois tipos de flores, mas para o ano voltaremos a Trevinca mais cedo para registar estes pormenores: as inflorescências femininas tendem a ser rosadas, e as masculinas são mais claras, com os estames salientes (como antenas) e no topo de hastes mais curtas.
Os britânicos conhecem esta espécie como mountain everlasting e também como catsfoot, porque o arranjo das flores lembra as almofadinhas que acomodam as unhas dos gatos. O género Antennaria conta com umas 50 espécies, das montanhas frias no norte da Europa, Ásia e América.
1 comentário :
Parabéns pelas bonitas fotos, que nos prendem imediatamente, e nos levam a percorrer as publicações à procura de mais. E há mais. E há muita informação interessante e bem suportada pelos conhecimentos que detêm na matéria botânico-geológica. E há outra informação também, de relação, com a qual podem encontrar semelhanças que, por isso, referem. Também eu não estou de acordo com muitas opções educativas que grassam nesta terra e nesta Europa. Ainda menos com as que se têm optado na educação não universitária americana, isto só para falar da civilização ocidental. Mas uma boa parte dessas opções educativas teve um contexto e inseriu-se em mentalidades próprias de uma época. Desenquadrá-las é desequilibrar os parâmetros da equação. Se persistem, então vale a pena até saber porquê. Mas, como sempre, sem fechar a porta. A diversidade é também uma riqueza, uma das maiores riquezas por que pautamos a presença da vida, ainda que traga problemas. Afinal fazemos todos parte do mundo biológico.
Muito bom. Faço votos que perdure a vossa presença neste espaço virtual.
Cumprimentos,
Vera C.
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