Arrudas de cheiro
O uso de perfumes é uma gentileza dos outros para connosco que raramente agradecemos. Talvez por isso a perda do olfacto com a covid pareceu a tantos tão incómoda, a par do silêncio súbito nas ruas vazias de povo obediente. É mais ou menos consensual o que é uma fragância aprazível (mesmo sem sabermos o preço), e temos muitas palavras para descrever os cheiros de que gostamos e os que nos desagradam. Entre as plantas, contudo, o odor é a mensagem. E essa comunicação, essencial à sua sobrevivência, não é feita para agradar aos nossos narizes. Tem como função repelir predadores ou seduzir polinizadores, na esperança de que que essa informação volátil fique nas respectivas memórias. O que interessa à planta é que o aroma exalado pelas suas folhas, ou flores, a sinalize, e sirva como aviso ou chamamento. Os aromas mais doces costumam atrair abelhas e borboletas, que precisam de néctar, formigas e outros bicharocos esfomeados; os aromas salgados parecem ser especialmente apreciados por moscas, que por vezes procuram apenas um abrigo seguro e saudável para as suas crias.
Em inúmeros casos, beneficiamos duplamente dessa química, como quando aromatizamos a comida. Noutras instâncias, porém, o odor é tão ruim que o estômago se revolta, e nos perguntamos se haverá algum insecto que aprecie tal cheiro, ou se o alerta emitido pela planta não estará a ser desproporcionado. É o que acontece com as espécies do género Ruta, parentes das aromáticas laranjeiras. São herbáceas perenes, por vezes de base lenhosa, com folhagem glabra, glauca ou cinzenta, e inflorescências densas de flores com 4 pétalas cor-de-enxofre e margens ciliadas. As folhas, salpicadas de glândulas, exalam um cheiro intenso e acre se pressionadas. Apostaríamos que isso é truque para afastar quem as queira trincar, mas surpreendentemente há plantas cujas inflorescências cheiram ainda pior e mantêm um séquito de insectos obstinados na sua vizinhança.
As arrudas endémicas das ilhas Canárias têm também um odor penetrante, embora distinto do das continentais. A Ruta pinnata, endemismo das ilhas de Tenerife e La Palma, é um arbusto alto (1,5 a 2 metros) com folhagem rala e folhas imparipinadas, de um verde pálido, compostas por 7 folíolos ovados e crenados. As flores são parecidas com as das arrudas ibéricas, mas as 4 pétalas (ou 5, no centro da inflorescência) pareceram-nos menos fimbriadas.
Nas Canárias há registo de mais dois endemismos no género Ruta: a Ruta microcarpa, de La Gomera, uma espécie rara, de pequeno porte (não mais de 80 cm de altura), com folhagem muito ramificada; e a Ruta oreojasme, da Grã-Canária, parecida com a anterior mas arbustiva. Partilham o gosto por habitats secos, em falésias e ladeiras rochosas. Alguns estudos indicam que estes endemismos são o produto de um único evento de colonização, em La Gomera, por uma espécie de origem africana, ocorrido há pelo menos 2,6 milhões de anos. Desta ilha, o género ter-se-á dispersado para a Grã-Canária (a ilha mais antiga) e Tenerife, e desta para La Palma, num processo de radiação e especiação típico de um arquipélago como as Canárias.
Curiosamente, algumas espécies de Ruta tiveram uso medicinal e são hoje usadas em refrigerantes, comidas e até perfumes — uma ciência de aromas e sabores que nos é desconhecida.
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