13/01/2023

Maria José & José Maria

Lotus glinoides Delile


Ensina o dicionário que uma escada é uma «série de degraus», e esclarece a mesma obra que um degrau é «cada uma das partes de uma escada». Está assim fechado o círculo: temos um par de palavras, degrau e escada, em que cada uma é definida em função da outra, e quem não souber o significado de nenhuma delas não tirará qualquer ensinamento útil da consulta do dicionário. Para que a comunicação entre humanos seja possível, é necessário estarmos de acordo quanto ao significado das palavras usadas — e, quando desconhecemos alguma, procurarmos saber como ela se define à custa de outras que já conhecemos. No entanto, este processo de explicar conceitos complexos decompondo-os noutros mais simples tem alguma vez que parar. Deve existir um núcleo de palavras ou de conceitos que, por serem de entendimento generalizado, não precisam de ser (ou não podem ser) dissecados ou definidos à custa de outros. Constituem as chamadas noções primitivas, sem as quais a linguagem se pulverizaria numa névoa destituída de significado. No caso da escada e do degrau, qual será a noção primitiva?

A taxonomia botânica funciona muito por comparação: são frequentes, nos nomes científicos das plantas, os epítetos que se referem à semelhança com outras plantas. É como explicar uma planta relacionando-a com outra possivelmente mais bem conhecida pela comunidade botânica ou pelo público em geral. Consideremos, por exemplo, a leguminosa ilustrada nas fotos: o nome Lotus glinoides indica que esta planta tem aparência semelhante às do género Glinus, incluído na família das Cariofiláceas. No intuito de perceber melhor a comparação, atentemos na única espécie do género Glinus na flora europeia. Chama-se Glinus lotoides, e o epíteto é inequívoco: diz-nos que a planta é parecida com as do género Lotus. Ora nenhum Lotus se pode assemelhar mais a ela do que o Lotus glinoides, que proclama essa mesma semelhança no seu bilhete de identidade. Eis-nos perante novo círculo perfeito: o Lotus glinoides é explicado pelo Glinus lotoides que é explicado pelo Lotus glinoides. Qual dos dois constituirá a noção primitiva? Enfim, uma boa amostra do sentido de humor dos botânicos — ou talvez do gosto (muito anterior a Bertrand Russell e a Kurt Gödel) pelos paradoxos da linguagem e do raciocínio lógico.

Do ponto de vista estritamente botânico, contrapor estas plantas uma à outra é pouco ou nada elucidativo: tanto nas flores como nas folhas (simples num caso, trifoliadas no outro) nada há que as aproxime; morfológica e evolutivamente, não podiam estar mais distantes. É portanto mais instrutivo comparar o Lotus glinoides com os seus congéneres, notando que ele se singulariza pelas flores rosadas num género maioritariamente de flores amarelas. Presente em quase todas as ilhas Canárias mas mais frequente em Fuerteventura e Lanzarote, e com presença assinalada também em Cabo Verde, norte de África, Médio Oriente e Paquistão, o cuernecillo rosado é uma planta rasteira, verde-glauca, acetinada, com flores pequenas (de uns 7 mm de comprimento), apreciadora de locais secos e pedregosos, tendencialmente desérticos. Encontrámo-lo nos campos de lava do Parque Nacional de Timanfaya, em Lazarote, contrariando o negrume dominante com as suas breves pinceladas de verde e rosa.

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