02/10/2023

A viagem dos massarocos

Somos uma espécie fascinada pelo passado, inquieta com o que a memória não guarda ou, pelo contrário, não é capaz de esquecer. E há ainda o passado muito longínquo, fora das nossas lembranças, que queremos a todo o custo reconstituir — incluindo perceber como é que os dinossauros, tão grandes e poderosos, se extinguiram. Sem testemunhas, buscam-se dados nos registos que a Terra conserva. As interpretações dessa informação que os cientistas publicitam são por vezes controversas — afinal a ciência não é uma doutrina — mas há capítulos da história da Terra que são consensuais. Exemplo disso é o relato da radiação evolutiva das espécies endémicas do género Echium nas Canárias, Madeira e Cabo Verde.

Echium perezii Sprague


A análise de vários marcadores genéticos (que pode ler-se aqui) em mais de 30 destas espécies de massaroco (ou tajinaste, para usar o nome espanhol) indica que todos estes endemismos do género Echium na Macaronésia derivam de um antepassado comum, oriundo da região mediterrânica. Os indícios apontam ainda para a existência de um único evento de colonização, que terá ocorrido nas Canárias há milhões de anos; as espécies que ali nasceram como resultado do isolamento insular ter-se-ão depois disseminado para os arquipélagos da Madeira e de Cabo Verde. Tendo em conta os ventos dominantes em torno dos três arquipélagos, crê-se que, neste processo de disseminação de sementes a tão grandes distâncias, as aves terão tido a maior parte do mérito.

Mas há ainda um pormenor da história dos massarocos endémicos das Canárias (mais de 20) a que vale a pena regressar. Apesar de descenderem de plantas do continente, que são todas herbáceas, algumas destas espécies insulares de Echium são arbustos lenhosos e perenes (apresentando uma roseta basal de folhas ou inúmeros ramos a formar um candelabro). Além disso, são vários os que florescem apenas uma vez, ao fim de dois anos de vida (digamos), gerando uma inflorescência gigante em espiga com milhares de flores, e morrendo em seguida.

Echium gentianoides Webb ex Coincy


Estas diferenças de morfologia e ciclo de vida estão decerto relacionadas com a diversidade de habitats nas ilhas da Macaronésia, sem grandes herbívoros, com clima quente e solo vulcânico rico em nutrientes. Mas que lucro há afinal em serem plantas lenhosas se florescem uma única vez, ainda que abundantemente? Segundo os estudiosos, e o bom senso, a longevidade é sempre uma vantagem quando se compete. E, numa fase da história das ilhas em que haveria poucos polinizadores, terá sido mais benéfico investir numa única época de floração exuberante, em vez de gastar energia anualmente nesse processo sem tanto proveito. Ora, convenhamos, para se sustentar uma inflorescência com tamanha abundância de flores, é boa ideia começar por fincar bem o pé no chão, de preferência com uma roseta larga de folhas robustas e um tronco firme.

Sendo indesmentível que estes endemismos da Macaronésia são colonizadores competentes, surpreende-nos que nenhum tenha conseguido instalar-se no continente europeu, fechando o ciclo desta disseminação do género Echium. Ou será o Echium boissieri um torna-viagem?

Echium webbii Coincy

2 comentários :

ZG disse...

São belezas incríveis que nunca tinha visto!!

jj.amarante disse...

Gostei muito deste post e sendo surpreendido pelos Massarocos gigantes não resisti a fazer um post referindo este: https://imagenscomtexto.blogspot.com/2023/10/mundo-vegetal.html