21/02/2024

Ansarinas da serra Nevada



Num conto de Stephen King, com o título That feeling, you can only say what it is in French*, uma personagem pensa repetidamente nos detalhes de uma viagem, como um filme em permanente exibição. A sensação de déjà vu é assombrosa; a história é afinal sobre o Inferno. Em vez de estarem a cozer num caldeirão, os condenados fazem, vêem, pensam e sentem o mesmo, dia após dia. O castigo é essa repetição, o tédio da vida eterna sem novidades. Sendo o oposto, a serra Nevada deve ser o análogo terreno do Paraíso. Foram tantas as surpresas na paisagem, e tão numerosas as plantas novas que encontrámos em Granada, que ainda hoje, ao revermos as fotos, nos parece que a memória não teve espaço para guardar tudo, e ainda há novidades para nos entretermos.

Quase no topo da serra Nevada, acima dos 2400 m de altitude, que se cobre de neve durante metade do ano, as plantas são pequeninas, não vá o vento despenteá-las, e de folhagem coriácea; algumas são também peludas. Estes são atributos que convêm a quem tem de enfrentar o frio à nascença, que ainda incomoda no Verão. Mas, quando despontam entre as rochas nas íngremes ladeiras, não lhes falta colorido, nem o ar saudável de quem dormiu longamente e bem.

Linaria glacialis Boiss.


A ansarina da serra Nevada é uma herbácea perene, optando por vezes por um regime anual, de folhagem glauca. As flores, que nascem em Junho e Julho, medem cerca de 3 cm; a planta pode chegar aos 20 cm, mas parece mais baixa porque os talos são rastejantes. As flores são versicolores, misturando o branco, o amarelo, o violeta, e guardando ainda uma pincelada de cor-de-laranja para os dois lóbulos no lábio superior da corola.

A Península Ibérica, a região mediterrânica, e mais geralmente o centro e sul da Europa, são locais preferidos pelas ansarinas. O formato das flores pouco difere entre as mais de 80 espécies conhecidas, o que dificulta a tarefa de quem tem de as identificar. Nas cores, pintas, manchas e riscos, as plantas do género Linaria não se entendem umas com as outras, e ainda bem. Parecem vizinhos com casas gémeas que pintam as portas e janelas de cores distintas, em geral garridas e desencontradas, incapazes que são de harmonizar os padrões e os gostos. Nas ansarinas nacionais predominam os tons de amarelo e roxo, com a honrosa excepção da ansarina com flores da cor-de-vinho-tinto que é frequente no Douro. Variações desta linária ocorrem noutras paragens com diferentes cores e porte menos erecto. Até na serra Nevada.

Linaria aeruginea subsp. nevadensis (Boiss.) D. A. Sutton


* Do livro Everything's eventual, editora Scribner, 2002

1 comentário :

bettips disse...

São uma, várias belezas, entre pedras, xistosas?
Abç