15/02/2024

Língua de Menorca

Passámos a última semana de 2023 em Menorca; exactamente um ano antes, tínhamos estado em Maiorca. Ficámos assim habilitados a emitir juízos comparativos sobre as ensaimadas de uma e de outra ilha. Gostámos mais das de Menorca, talvez por as termos comido mais vezes e com diferentes recheios: todos os dias ao pequeno-almoço havia novas variedades para experimentar. Mas nem este blogue se chama Dias com Doces, nem os agrados de boca são a motivação principal (ou secundária) das viagens que fazemos. Fomos a Menorca para ver um feto, o mesmo que procuráramos em vão em Maiorca no ano anterior. Desta vez a busca foi coroada de êxito, e é natural que tenhamos ficado mais agradados com a ilha que nos mostrou os seus tesouros do que com aquela que os escondeu. É possível que Maiorca não o tenha feito por avareza: por culpa das cabras devoradoras que assolam a ilha, se calhar já lá não existem o tal feto nem outras preciosi­dades botânicas. Não é por acaso que a caça às cabras assilvestradas em Maiorca está aberta o ano inteiro; em Menorca o problema parece não existir, e essa caça nem está prevista.

É cada vez mais difícil encontrar a língua-cervina (Asplenium scolopendrium) em Portu­gal continental. Há 13 anos, no primeiro e até hoje único concurso Dias com Árvores, desafiá­mos os leitores a descobrir populações desse feto em certos concelhos do Grande Porto. Rui Soares, único participante do concurso, reportou-nos várias localizações em Ovar, concelho que não fazia parte da lista; ainda assim, foi com gosto que o declarámos vencedor e lhe atribuímos o prémio anunciado. Desde então, nós próprios encontrámos a língua-cervina, sempre com poucos exemplares, em Gaia, Espinho e Paredes. No século XIX, pelo testemunho de Augusto Luso no seu Herbaryum Cryptogamicum do Porto e seus arredores (1872-73), a espécie era frequente em Gaia, Fânzeres (Gondomar) e Paranhos (Porto). E não foi apenas a destruição de habitats causada pela expansão urbana que fez o feto rarear: ele também desapareceu de lugares aparente­mente bem conservados onde outros fetos se mantiveram sem problemas. É de suspeitar que, com a subida gradual da temperatura, o nosso clima esteja menos propício à sobrevi­vência da língua-cervina. No norte da Europa, a espécie continua a ser frequente e abundante — e, para não termos motivos de inveja, nos Açores também.

O feto que procurávamos nas Baleares era também uma língua-cervina. Se o povo fosse dado a erudições, chamar-lhe-ia língua-cer­vina-sagitada; o seu nome científico é Asple­nium sagittatum. Tal como o Asplenium scolo­pendrium, tem folhas inteiras e os soros apre­sentam-se geminados: no verso das frondes, cada risca que aparenta ser um único soro é na verdade formada por dois, cada qual com o seu indúsio. Essa característica diferencia estas duas espécies das restantes do género Asplenium (mesmo do A. hemionitis, igualmente com folhas inteiras), e explica que elas tivessem sido tradicionalmente segregadas no género autónomo Phyllitis.

Asplenium sagittatum (DC.) Bange [= Phyllitis sagittata (DC.) Guinea & Heywood]


Como o nome indica, a língua-cervina-sagitada difere da normal pelas folhas... sagitadas — ou seja, pela presença de lobos triangulares na base das folhas. Contudo, essa forma das folhas só é evidente em plantas adultas bem desenvolvidas, e as folhas jovens do A. sagittatum confundem-se facilmente com as do A. scolopendrium. De resto, o A. sagittatum tem folhas de menor tamanho (com 15 a 20 cm de comprimento máximo, enquanto que as do A. scolopendrium podem chegar aos 40 cm) mas com um pecíolo proporcionalmente mais longo, amiúde excedendo em comprimento a lâmina da folha.

Com uma distribuição circum-mediterrânica, e vivendo exclusivamente em fendas de rochas calcárias, o A. sagittatum prefere lugares muito sombrios e húmidos. Em Menorca encontrámo-lo em vários barrancos, mas onde o vimos mais feliz foi em Pas d'en Revull, num caminho estreitíssimo entre grandes paredes rochosas onde a penumbra era permanente. Talvez as peculiares exigências de habitat expliquem a sua raridade em toda a área de distribuição: se no entorno do Mediterrâneo não escasseiam afloramentos calcários, parecem ser poucos os lugares com o grau de frescura que ele exige.

3 comentários :

bettips disse...

A ver
a ver
Menorca é surpreendente, foi interessante escolhê-la, não pelos agrados de boca mas pelas curiosidades do reparo.
Abçs

Rafael Carvalho disse...

Conheço alguns exemplares de língua-cervina no meu concelho, Armamar.

Paulo Araújo disse...

Obrigado pela informação, Rafael. De facto, já tinha notado no iNaturalist a existência de um registo seu de língua-cervina em Armamar. É sem dúvida surpreendente. Sei que existem em Armamar bosques (ou fragmentos de bosque) bastante sombrios em vales encaixados íngremes - mas esses bosques não são de modo nenhum tão húmidos como os do Minho ou da Beira Litoral. Para mim é um mistério o modo como a língua-cervina se tornou tão rara.