Super-margarida de La Palma
Quando os meios de locomoção eram rudimentares e as estradas inexistentes, uma ilha não precisava de se esforçar para ser grande. Mesmo que as distâncias medidas em linha recta — e são essas que os pássaros usam — não ultrapassassem dúzia e meia de quilómetros, se o caminho obrigasse a subidas e descidas por ladeiras íngremes, se cruzasse várias ribeiras de caudal impetuoso e zonas densamente florestadas, então ir de A para B poderia consumir todas as horas do dia ou ser totalmente impossível. Populações radicadas em extremos opostos de uma ilha tão pequena como as Flores (17 quilómetros de uma ponta a outra) poderiam viver uma vida inteira sem nunca se encontrarem. Para elas, o mundo desconhecido começava na própria ilha onde viviam, o que era um modo de ela ser infinita. Com as estradas que agora a rasgam, a ilha fez-se irremediavelmente pequena: quem a visita acha que a viu toda em poucas horas, e quem lá mora só quer sair para o vasto e variado mundo. São equívocos insanáveis, pois tudo é pequeno e insuficiente para quem é dominado por uma impaciência voraz.
As ilhas Canárias são, de um modo geral, bem maiores que as dos Açores. As maiores ilhas do arquipélago espanhol (Fuerteventura, Tenerife e Grã-Canária) têm, cada uma delas, uma área duas a três vezes superior à de São Miguel; apenas El Hierro, La Gomera e La Palma são ultrapassadas em área pela maior ilha açoriana. Contudo, a diferença entre La Palma e São Miguel é curta — 708 km2 contra 741 km2 — e há-de ser anulada quando se derem uma ou duas erupçõezitas adicionais. Quem ignore dados geográficos e visite ambas as ilhas terá a impressão de que La Palma é de longe a maior das duas, e esse é o resultado do planeamento engenhoso da rede viária. Em La Palma não há nada que se assemelhe a uma auto-estrada ou via rápida, os túneis são poucos e o traçado das estradas sujeita-se à orografia: ou elas serpenteiam preguiçosamente pelas curvas de nível, ou fazem-se à montanha sem que com isso consigam ser muito mais rectilíneas.
Foi por essa razão que a descoberta da super-margarida em flor quase nos fez perder o almoço. Subindo de Santa Cruz de La Palma ao Roque de Los Muchachos, e parando aqui e ali para umas fotos que tinham falhado na visita anterior, achámos que estaríamos sem problemas em Los Llanos à hora do repasto. Mas o trajecto escolhido tinha quase 100 km, apesar de a distância em linha recta entre as duas principais povoações da ilha ser apenas de 16 km. Entre paragens imprevistas e estradas percorridas com o vagar que a prudência impunha, o almoço já tardio acabou por ser num restaurante de berma de estrada (excelente, por sinal) a muitos quilómetros de Los Llanos. A detecção de exemplares floridos da super-margarida obrigou-nos a uma última paragem quando o atraso era já grande.
Dizemo-la super porque esta margarida, de nome científico Gonospermum canariense, é um arbusto lenhoso que pode chegar aos 2,5 m de altura; e o exemplar que nos obrigou à paragem de emergência era mesmo dessa envergadura. Já chamar-lhe margarida parece forçado, pois os capítulos das inflorescências são formados apenas por flósculos tubulares, desprovidos daquelas lígulas brancas que são apanágio das margaridas comuns. Sucede que o género Gonospermum, endémico das Canárias, inclui espécies com esse atributo, como o G. revolutum, endémico de Tenerife. Mesmo aqui na Europa há, entre as compostas, géneros que contam com espécies de inflorescências liguladas e com outras não liguladas (por exemplo, Anthemis arvensis e Anthemis canescens). E pode dar-se essa discrepância dentro da mesma espécie, por exemplo no Chamaemelum nobile.
Assim, a ausência de lígulas não impede este endemismo da ilha de La Palma, Gonospermum canariense, de pertencer ao clube das margaridas. Há, porém, uma divergência mais séria entre o G. canariense e o G. revolutum: o segundo não é de modo nenhum arbustivo; é uma planta herbácea vivaz, ainda que com base lenhosa. Usando apenas critérios morfológicos, as duas espécies dificilmente integrariam o mesmo género botânico — e, de facto, a planta tenerifenha chamou-se inicialmente Lugoa revoluta. Foi por culpa dos estudos moleculares que o género Gonospermum passou a abarcar esta Lugoa e ainda três margaridas endémicas da Grã-Canária (também liguladas) antes incluídas no género Tanacetum.
Contudo, a arrumação taxonómica destas margaridas canarinas não está ainda estabilizada. Naquele que parece ser o estudo mais recente sobre o assunto, datado de 2011, os autores defendem que, por razões filogenéticas, o género Gonospermum deveria ser incluído em Tanacetum. Uma alternativa, que os autores consideram pouco razoável, seria desmembrar o populoso género Tanacetum (com umas 160 espécies distribuídas pelo hemisfério norte) numa miríade de géneros morfologicamente mal caracterizados.