30/05/2024

Super-margarida de La Palma



Quando os meios de locomoção eram rudimentares e as estradas inexistentes, uma ilha não precisava de se esforçar para ser grande. Mesmo que as distâncias medidas em linha recta — e são essas que os pássaros usam — não ultrapassassem dúzia e meia de quilómetros, se o caminho obrigasse a subidas e descidas por ladeiras íngremes, se cruzasse várias ribeiras de caudal impetuoso e zonas densamente florestadas, então ir de A para B poderia consumir todas as horas do dia ou ser totalmente impossível. Populações radicadas em extremos opostos de uma ilha tão pequena como as Flores (17 quilómetros de uma ponta a outra) poderiam viver uma vida inteira sem nunca se encontrarem. Para elas, o mundo desconhecido começava na própria ilha onde viviam, o que era um modo de ela ser infinita. Com as estradas que agora a rasgam, a ilha fez-se irremediavelmente pequena: quem a visita acha que a viu toda em poucas horas, e quem lá mora só quer sair para o vasto e variado mundo. São equívocos insanáveis, pois tudo é pequeno e insuficiente para quem é dominado por uma impaciência voraz.

As ilhas Canárias são, de um modo geral, bem maiores que as dos Açores. As maiores ilhas do arquipélago espanhol (Fuerteventura, Tenerife e Grã-Canária) têm, cada uma delas, uma área duas a três vezes superior à de São Miguel; apenas El Hierro, La Gomera e La Palma são ultrapassadas em área pela maior ilha açoriana. Contudo, a diferença entre La Palma e São Miguel é curta — 708 km2 contra 741 km2 — e há-de ser anulada quando se derem uma ou duas erupçõezitas adicionais. Quem ignore dados geográficos e visite ambas as ilhas terá a impressão de que La Palma é de longe a maior das duas, e esse é o resultado do planeamento engenhoso da rede viária. Em La Palma não há nada que se assemelhe a uma auto-estrada ou via rápida, os túneis são poucos e o traçado das estradas sujeita-se à orografia: ou elas serpenteiam preguiçosamente pelas curvas de nível, ou fazem-se à montanha sem que com isso consigam ser muito mais rectilíneas.

Gonospermum canariense Less. subsp. canariense


Foi por essa razão que a descoberta da super-margarida em flor quase nos fez perder o almoço. Subindo de Santa Cruz de La Palma ao Roque de Los Muchachos, e parando aqui e ali para umas fotos que tinham falhado na visita anterior, achámos que estaríamos sem problemas em Los Llanos à hora do repasto. Mas o trajecto escolhido tinha quase 100 km, apesar de a distância em linha recta entre as duas principais povoações da ilha ser apenas de 16 km. Entre paragens imprevistas e estradas percorridas com o vagar que a prudência impunha, o almoço já tardio acabou por ser num restaurante de berma de estrada (excelente, por sinal) a muitos quilómetros de Los Llanos. A detecção de exemplares floridos da super-margarida obrigou-nos a uma última paragem quando o atraso era já grande.

Dizemo-la super porque esta margarida, de nome científico Gonospermum canariense, é um arbusto lenhoso que pode chegar aos 2,5 m de altura; e o exemplar que nos obrigou à paragem de emergência era mesmo dessa envergadura. Já chamar-lhe margarida parece forçado, pois os capítulos das inflorescências são formados apenas por flósculos tubulares, desprovidos daquelas lígulas brancas que são apanágio das margaridas comuns. Sucede que o género Gonospermum, endémico das Canárias, inclui espécies com esse atributo, como o G. revolutum, endémico de Tenerife. Mesmo aqui na Europa há, entre as compostas, géneros que contam com espécies de inflorescências liguladas e com outras não liguladas (por exemplo, Anthemis arvensis e Anthemis canescens). E pode dar-se essa discrepância dentro da mesma espécie, por exemplo no Chamaemelum nobile.

Gonospermum canariense Less. subsp. canariense


Assim, a ausência de lígulas não impede este endemismo da ilha de La Palma, Gonospermum canariense, de pertencer ao clube das margaridas. Há, porém, uma divergência mais séria entre o G. canariense e o G. revolutum: o segundo não é de modo nenhum arbustivo; é uma planta herbácea vivaz, ainda que com base lenhosa. Usando apenas critérios morfológicos, as duas espécies dificilmente integrariam o mesmo género botânico — e, de facto, a planta tenerifenha chamou-se inicialmente Lugoa revoluta. Foi por culpa dos estudos moleculares que o género Gonospermum passou a abarcar esta Lugoa e ainda três margaridas endémicas da Grã-Canária (também liguladas) antes incluídas no género Tanacetum.

Contudo, a arrumação taxonómica destas margaridas canarinas não está ainda estabilizada. Naquele que parece ser o estudo mais recente sobre o assunto, datado de 2011, os autores defendem que, por razões filogenéticas, o género Gonospermum deveria ser incluído em Tanacetum. Uma alternativa, que os autores consideram pouco razoável, seria desmembrar o populoso género Tanacetum (com umas 160 espécies distribuídas pelo hemisfério norte) numa miríade de géneros morfologicamente mal caracterizados.

22/05/2024

Pomponeira dos altos cumes



Crê-se, com alguma razão, que a evolução do que existe na Terra respeita um princípio inevitável: a propriedade dos valores intermédios. Diz ela que entre um dinossauro e um colibri existiu algum elo, nem já réptil nem ainda ave, de tamanho e formato intermédios; que das plantas sem flor, como os fetos, até às orquídeas, de floração muito sofisticada, houve que passar por flores reduzidas ao essencial, verdes, sem pétalas e sem aroma, como as dos ginkgos. Mas nós sabemos que há descontinuidades nestes processos biológicos capazes de desacreditar algumas leis experimentais óbvias e complicar os estudos da história evolutiva da flora no planeta. Bom exemplo disso é a herbácea perene, de prados pedregosos de montanha, que vos mostramos de seguida.

Senecio boissieri DC. [= Jacobaea boissieri (DC.) Pelser]


O S. boissieri é um endemismo espanhol com uma distribuição curiosa: ocorre na Cordilheira Cantábrica, no centro dos Pirenéus e nas montanhas mais elevadas dos sistemas central e bético. Ainda que não se tenham descoberto diferenças morfológicas dignas de menção entre plantas das quatro regiões anteriores, um estudo genético publicado em 2006 mostrou que esta espécie abriga dois grupos distintos: um na cordilheira Cantábrica (a norte de Espanha) e outro nas serras de Guadarrama (no centro), de Baza e Nevada (a sul). Os autores explicam esta disparidade pelo isolamento geográfico e climático da população do norte relativamente às do centro e sul. Mais precisamente, supondo que a área de distribuição desta asterácea tenha sido originalmente mais vasta e menos fragmentada (o que não se sabe ao certo...), e que essa separação do território se tenha dado de modo contínuo de sul para norte (o que também não é inteiramente garantido...), os exemplares vizinhos das serras de Baza e Nevada mantiveram-se conectados com os que ocorrem na serra de Guadarrama, sendo a Cordilheira Cantábrica um refúgio disjunto a norte que se manteve frio por um período mais longo e cuja população de S. boissieri entretanto divergiu das restantes. Estando os cientistas a olhar para um passado de há muitos milhões de anos, admiramo-nos que consigam produzir esta imagem da natureza de outrora que, embora cautelosa e granulada, nos convence.



As inflorescências de todas as espécies do género Senecio que são nativas de Portugal continental têm capítulos em tons de amarelo. O tom rosa púrpura dos flósculos no S. boissieri, ainda que não seja invulgar fora da Península Ibérica, é uma raridade aos nossos olhos. As fotos são de exemplares da Serra Nevada, um dos locais de maior biodiversidade botânica, de habitats e de faixas climáticas na Europa, e foram captadas entre os 2500 m e os 3300 m de altitude.

16/05/2024

Pinheirinho crespo



Antes do advento dos estudos genéticos e da revolução que o Angiosperm Phylogeny Group trouxe às árvores taxonómicas, o género Plantago, ainda que respeitado pela sua diversidade e cosmopolitismo (ocorre em todos os continentes e alberga duzentas espécies), não suscitava particular devoção da generalidade dos botânicos. Além de as espécies que o compõem terem inflorescências pouco chamativas, não lhe incrementa o prestígio que algumas delas (por exemplo, P. lanceolata, P. coronopus e P. major) sejam plantas ruderais muito comuns. Mas o mundo foi virado do avesso e a família Plantaginaceae — encabeçada, como é bom de ver, pelo género Plantago — absorveu uma mão-cheia de plantas vistosas e com uma firme legião de admiradores, como as linárias, as bocas-de-lobo e as dedaleiras, todas elas anteriormente incluídas na família Scrophulariaceae. Ainda hoje há quem não aceite líder tão fruste para plantas tão garbosas, preferindo inventar famílias espúrias como Antirrhinaceae.

Plantago webbii Barnéoud


Há assim motivos para olharmos estas plantas com outro apreço. A versatilidade de formas é um dos atributos do género: além das ervas reduzidas a meia dúzia de espigas florais emergindo de uma roseta basal, há espécies com hastes ramificadas mas que têm ciclo de vida curto (P. afra), e outras que desenvolvem base lenhosa permanente e formam autênticos arbustos. É a esta última categoria que pertencem algumas das espécies endémicas da Macaronésia: P. arborescens (com várias subespécies na Madeira e nas Canárias, entre elas a madeirense subsp. costae), P. famarae (exclusiva de Lanzarote) e P. webbii (ilustrada nas fotos, endémica de La Palma, Tenerife e Grã-Canária).

A crespa ou pinillo blanco (são esses os nomes vulgares do P. webbii) é um arbusto de uns 30 cm de altura que cresce em lugares rochosos em zonas de montanha, geralmente acima dos 1400 metros de altitude. É frequente em La Palma no bordo da Caldeira de Taburiente, e floresce entre Maio e Agosto. As folhas, que revestem as hastes de cima a baixo, como que agasalhando-as do frio, são lineares e quase verticais, o que diferencia a planta, logo à primeira vista, das suas congéneres também lenhosas, pois tanto P. arborescens como P. famarae têm folhas concentradas nas extremedidades das hastes e em posição mais ou menos horizontal.

Pinillo, que poderíamos traduzir por pinheirinho, é um nome que em Espanha, segundo o portal Anthos, se aplica, em combinações variadas, a um grande número de espécies vegetais, incluindo, além de diversas espécies de Plantago, alguns Equisetum, várias lamiáceas dos géneros Ajuga e Teucrium, e ainda a composta Leuzea conifera. Igual confusão reina entre os pinheirinhos deste lado da fronteira. Em Portugal e em Espanha, se quisermos falar de plantas sem provocar confusões, os nomes comuns são de evitar.