20/12/2024

Alfavaca das alturas

Em português corrente, legume significa qualquer produto hortícola habitualmente consumido em sopas ou saladas: couves, rabanetes, cenouras, feijões, tomates, etc. Acontece que muitas das plantas que produzem esses alimentos não são leguminosas. Da nossa curta lista, só os feijões provêm de plantas dessa família: couves e rabanetes são as folhas ou raízes de certas crucíferas; tomates são os frutos de uma solanácea. Assim, quem se preocupe acima de tudo com a lógica e a coerência da língua pode ser levado a chamar vegetais aos tradicionais legumes. Há contudo a questão séria de esse uso da palavra vegetais tresandar a estrangeirismo. Não terá sido pela vontade de corrigir uma falha da língua que, nos supermercados ou na boca dos falantes de português, os vegetais têm vindo a destronar os legumes. É de facto mais um sintoma (e até dos menos graves) do modo como a língua vem sendo abastardada pela imparável onda de anglicismos. Assim, é um acto de resistência continuarmos a chamar legumes às couves e cenouras, apesar de sabermos que elas nada têm a ver com as leguminosas.

Contudo, hoje falamos de leguminosas propriamente ditas. É sabido que elas têm uma importância primordial na alimentação humana, não apenas por serem consumidas directamente (aos feijões, de que há inúmeras variedades, podemos juntar o grão-de-bico, as ervilhas, as lentilhas, a soja, etc.), mas por contribuirem decisivamente para a fertilização dos solos agrícolas através da fixação do azoto. Antes da invenção dos fertilizantes químicos, os trevos eram parte obrigatória da rotação de sementeiras em parcelas agrícolas. Serviam para forragem, mas a sua principal função era recuperar os nutrientes do solo para permitir cultivos mais exigentes.

Além das leguminosas que nos são obviamente úteis, há inúmeras outras que, embora igualmente equipadas para beneficiar solos (pois não há leguminosa que o não saiba fazer), nunca foram cultivadas ou usadas como alimento. Algumas ocupam habitats agrestes e não se deixariam facilmente domesticar, outras são espinhosas a ponto de desencorajarem o mais voraz dos apetites, outras ainda, pelo tamanho insignificante, não compensariam o esforço do cultivo. Nem toda a natureza existe para nosso proveito e é bom que assim seja.

Astragalus nevadensis subsp. nevadensis Boiss.


O género Astragalus é muito populoso — de facto, é o mais populoso género botânico à face da Terra, com mais de 3200 espécies descritas, deixando o segundo classificado (Bulbophyllum, com cerca de 2000 espécies) a grande distância. Face a estes números, que haja 41 espécies de Astragalus na Península Ibérica não nos parece exagerado. A diversidade de formas e tamanhos faz com que a destrinça das espécies de alfavacas (nome que aplicamos indistintamente às espécies do género) não seja difícil, embora também ajude conhecer-lhes a distribuição. Por exemplo, pelas flores características e pelas folhas imparipinuladas de aspecto sedoso, o arbusto das fotos insere-se claramente na família das leguminosas e, dentro desta, no género Astragalus. A presença de espinhos, o aspecto geral da planta e o habitat de alta montanha reduzem os candidatos a dois. Mas na serra Nevada só um deles existe — aquele que, muito apropriadamente, se chama Astragalus nevadensis. O candidato excluído, A. sempervirens, pouco se diferencia do vencedor, mas é sabido que só ocorre nas cadeias montanhosas do norte da Península.

A maioria das espécies peninsulares de Astragalus são herbáceas, mas entre as espécies arbustivas o Astragalus nevadensis está longe de ser o mais espinhento. Nesse campeonato de agressividade dão cartas duas espécies aparentadas: o Astragalus tragacantha, restrito em Portugal à costa vicentina, e o não menos pungente Astragalus balearicus, exclusivo das ilhas Baleares.

06/12/2024

Sempre viva

Sempervivum minutum (Kunze ex Willk.) Nyman ex Pau


A serra Nevada, obrigada pelo nome que tem a cobrir-se de neve nas zonas mais elevadas, pelo menos durante o Inverno, não é confundível, seja pelo clima, vegetação ou paisagem, com o interior escarpado da ilha de Tenerife, nas Canárias. As plantas dos cumes peninsulares, se transplantadas para Tenerife, morreriam num curto prazo vitimadas pelo calor, insolação e secura; e as tenerifenhas, se fizessem a viagem inversa, não sobreviveriam ao frio e à neve. É inesperado que locais tão contrastantes abriguem plantas claramente aparentadas, mas é isso mesmo que sucede com os géneros Sempervivum e Greenovia. O primeiro está representado na serra Nevada por uma única espécie, S. minutum (nas fotos), e o segundo (que alguns autores incluem em Aeonium) conta com três espécies em Tenerife, sendo Greenovia aizoon a nossa favorita. Se nos abstrairmos da cor das flores (rosadas no Sempervivum, amarelas na Greenovia), estas duas plantas são óbvias versões do mesmo modelo: rosetas basais, mais ou menos esféricas, de folhas imbricadas; hastes florais erectas, revestidas de folhas a fingir de escamas; e inflorescências terminais compactas, formadas por flores com numerosas pétalas rodeando profusas coroas de estames. Qualquer aficionado de suculentas gostaria de as cultivar lado a lado, mas os diferentes requisitos ecológicos inviabilizam tal desejo: num lugar onde uma delas pudesse viver ao ar livre, a outra exigiria ambiente climatizado.

O género Sempervivum engloba umas 40 espécies, amiúde difíceis de destrinçar, distribuídas pelas montanhas do norte de África, Médio Oriente e Europa, a que se somam centenas de variedades cultivadas. Já aqui falámos do S. vicentei, que vimos na Cantábria, e várias outras espécies são frequentes nas cadeias montanhosas do país vizinho. A sua completa ausência em território português é difícil de entender. É verdade que as nossas montanhas continentais são baixotas, ficando aquém de todas as grandes ou médias montanhas espanholas, mas várias das espécies peninsulares de Sempervivum ocorrem também a altitudes moderadas. O S. tectorum e o S. vicentei, por exemplo, admitem viver a altitudes rondando os 800 metros, onde a neve é fenómeno raro. Essa injustiça na repartição de valores naturais entre os dois países impõe-nos uma ida a Espanha sempre que queiramos admirar estas semprevivas e outras jóias botânicas no seu habitat. É uma obrigação que cumprimos com todo o gosto.