27/03/2025

Gigil (*)

Narcissus pseudonarcissus L.
Não são as ervas daninhas, são as flores
que governam os jardins. Os tribunais são sensíveis
aos odores que vêm da janela, e os juízes reduzem
cada pena de prisão a metade,
pois consideram que, em cidade
tão bela e cheirosa, estar fechado equivale
ao dobro do sacrifício.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia (Editorial Caminho, 2010)


(*) Inebriamento sentido face a algo adorável, como um gatinho ou uma paisagem outonal (explicação aqui)

20/03/2025

Em busca da serrátula perdida



Estudos recentes parecem indicar que, num formigueiro, nenhuma formiga é insubstituível. Nem mesmo a rainha, responsável pela renovação da população de formigas, tem essa prerrogativa. E a sobrevivência de cada colónia de formigas depende da eficiência e versatilidade da maioria dos seus habitantes. O sucesso desta estratégia é inquestionável: diz-se que a população de formigas (nome genérico para inúmeras espécies) na Terra excede os 20 mil biliões de indivíduos. Contudo, a quem valoriza o talento individual, encara a especialização no trabalho como um objectivo e cataloga a sociedade pelo tipo de emprego que cada um tem, esta estrutura da sociedade das formigas soa inverosímil. É certo que as tarefas que conseguimos listar para uma formiga não se nos afiguram demasido complexas. Mas a coordenação de um número muito elevado de formigas, que age aparentemente sem um líder como se se tratasse de um único ser vivo múltiplo, requer que cada formiga seja pouco exigente e não muito especializada. Entre nós, pelo contrário, há aquelas pessoas excepcionais que, tendo atingido um tal grau de mestria no seu trabalho, são de facto inigualáveis. Exemplo? Um vigilante da natureza depois de duas ou três décadas de caminhadas pelos inúmeros recantos do parque natural que tem a seu cargo proteger. Quando se reforma, todos lamentam a perda de memória sobre um vasto território natural, e reconhecem que a sua erudição sobre bosques, turfeiras, riachos, montanhas, flora, fauna, conservação da natureza e biodiver­sidade será difícil de recriar. Foi um destes notáveis vigilantes da natureza, entusiasmado e bem disposto, com um à-vontade invejável a calcorrear as penedias do Parque Natural da Peneda-Gerês, que ajudou alguns botânicos a encontrar perto da Fonte Fria um núcleo desta asterácea muito rara.

Klasea legionensis (Lacaita) Holub [serra do Gerês]


A Klasea legionensis é um endemismo do noroeste da Península Ibérica, havendo dela registos no Gerês, em Zamora e em Ourense, e encontrando-se a maior população da espécie nas margens do lago de Sanábria. A primeira notícia da presença desta planta em Portugal foi dada em 2008 na revista Silva Lusitana por Íñigo Pulgar e Miguel Serrano, que descobriram um núcleo junto à fronteira entre o Parque Nacional da Peneda-Gerês e o Parque Natural Baixa Limia-Serra do Xurés, com exemplares de ambos os lados.

Klasea legionensis (Lacaita) Holub [lago de Sanábria]
Estas são plantas perenes, de uns 80 cm de altura, apreciadoras de solos ácidos, que vivem em taludes levemente inclinados ou em orlas de matos rasteiros de urze vermelha e carqueja, em zonas montanhosas acima dos 1000 metros de altitude. Os seus indivíduos adultos, por razões que desconhecemos, decidem por vezes não florir durante vários anos seguidos, e o de 2024 terá sido um desses anos de repouso porque, na nossa visita à Fonte Fria, só vimos um exemplar em flor, vizinho de muitos outros reduzidos à roseta de folhas basais. Ao contrário das formigas, a K. legionensis parece incapaz de reagir a adversidades ambientais: recua com o adensamento dos matos e mostra-se pouco apta a colonizar novos habitats. A sua área global de distribuição tem-se reduzido dramaticamente nos últimos anos, e no Gerês contam-se, ou contavam-se até há poucos anos, cerca de 90 indivíduos. Morar em zona pouco frequentada por visitantes ou beneficiar da proteção dedicada dos vigilantes da natureza talvez sejam ajudas insuficientes para evitar que desapareça.

15/03/2025

Ensaiões de La Gomera I & II



Por ser esse o nome que lhes é dado na Madeira, chamamos ensaiões às plantas suculentas do género Aeonium. Nesse arquipélago as espécies endémicas são apenas duas: A. glutinosum e A. glandulosum, ambos de flores amarelas. Nas Canárias, de onde se presume que o género seja originário, os ensaiões são em muito maior número, diversificando-se tanto na forma de crescimento como na cor das flores. Os endemismos contam-se às dezenas, e incluem desde plantas rasteiras a arbustos de porte respeitável. Bastaria uma ilha só, a de Tenerife, com dezena e meia de espécies ou subespécies próprias, para ficarmos cientes dessa riqueza — de que já demos amostras elucidativas aqui e aqui, tendo ainda feito uma incursão a La Palma com o mesmo propósito. Mas a pulsão coleccionista leva-nos a querer conhecer os ensaiões das restantes ilhas das Canárias, mesmo que alguns nos pareçam pequenas variações de figurinos já conhecidos. Hoje aportamos a La Gomera para o primeiro de dois novos fascículos desta série intermitente.

Aeonium appendiculatum A. Banares


O Aeonium appendiculatum — que tem uma única haste robusta, não ramificada, com cerca de um metro de altura, encimada por grandiosa inflorescência piramidal em tons de branco e rosa — é claramente uma versão do tenerifenho A. urbicum, sendo quase sósia da subespécie meridionale. Distingue-se desta, contudo, pelas folhas glabras (não pulverulentas, apenas ciliadas nas margens) e pela inflorescência mais ampla e vistosa. Tendo já visto e fotografado ambas as plantas, não temos dúvidas em proclamar que a de La Gomera é a mais garbosa das duas. É possível encontrá-la, por vezes formando populações numerosas, nos barrancos soalheiros da metade sul de La Gomera, acima dos 400 metros de altitude. As fotos são do barranco de Benchijigua, onde a espécie é particularmente abundante e atinge a plena floração em meados de Maio.

Aeonium decorum Webb ex Bolle


O segundo ensaião de hoje, A. decorum, ocorre em La Gomera e em Tenerife: mas, das duas variedades reconhecidas, uma delas, a var. alucense, é exclusiva de La Gomera, e dela são as fotos aqui apresentadas. Trata-se de uma planta arbustiva rasteira, com ramos esparsos e retorcidos, que se fica pelos 20 cm de altura. A folhagem agrupa-se em rosetas nas extremidades dos ramos e tem uma coloração muito atraente em tons de verde, vermelho e laranja. As hastes florais são vermelhas e as flores, reunidas em cimeiras pouco numerosas, têm pétalas brancas tingidas de rosa. Encontrámos este A. decorum, em número escasso e já em final de floração (ou com floração abortada pelo calor e pela seca), em Maio de 2024, no barranco de Minguana (sudeste de La Gomera), a uns 600 metros de altitude.