26/05/2025

Cabo de Gata



O Cabo de Gata, que na antiguidade clássica se chamava Promontório Charidemi, é uma ponta de terra de origem vulcânica no extremo sudeste da Península Ibérica, província de Almería, mesmo em frente ao mar Mediterrâneo. O clima é árido, quase desértico, com invernos amenos e temperaturas que podem ser tão elevadas no Verão que, em alguns dias, não é ali permitida a presença de gente. No Parque Natural do Cabo de Gata, no município de Níjar, que abriga o Cabo e serras vizinhas, os habitats são tão variados que não é surpresa que contenha uma vegetação excepcional, com muitas espécies exclusivas, resultado da adaptação à secura, ao solo salgado e resvaladiço, à costa escarpada, ao vento forte e à maresia. Próximo deste local está o único deserto na Europa (o deserto de Tabernas), que se transforma num tapete de flores quando cai alguma chuva. O resto é mar, enseadas e praias extensas de areia fininha. Aqui lhe mostramos fotos de três dos muitos endemismos do Cabo de Gata, todos com o epíteto específico charidemi a sublinhar o carácter único da flora deste lugar.

Antirrhinum charidemi Lange, dragoncillo del Cabo


Dianthus charidemi Pau, clavelina del Cabo


Teucrium charidemi Sandwith, poleo del Cabo


Este promontório é um canto remoto cheio de vento, com poucos e maus acessos, onde a circulação automóvel não é autorizada. Tudo isto desencoraja, felizmente, o turismo de maior impacto no ambiente. Quase sem população residente, não atraíu os grandes empreendimentos turísticos que são comuns na costa espanhola do Mediterrâneo, e isso tem protegido a sua biodiversidade. Ainda assim, a flora desta reserva da biosfera (terrestre e marinha) da Unesco não está livre de uma séria ameaça: vivem lá demasiadas cabrinhas, para quem não há falésias nem penhascos inacessíveis, e que não sabem que as plantas que devoram são endemismos raros.

Dizem algumas fontes credíveis que o nome do promontório não alude a felinos, mas à abundância de ágatas, cuja extracção terá sido desenfreada noutros tempos. Por contracção fonética, o nome encolheu e alindou-se.

17/05/2025

A fábrica das espécies



La Gomera, a segunda menor das sete principais ilhas das Canárias, é uma fábrica muito diligente de diversidade vegetal. Só do género Sideritis, nem sequer o mais variado da flora dessa ilha (é ultrapassado pelo género Aeonium), são seis as espécies ou subespécies endémicas de La Gomera. Tenerife, com uma área quase seis vezes superior, fica-se pelas dezasseis, o que significa que a menor das duas ilhas se sai airosamente da contenda. O que terá levado este género de lamiáceas a produzir tamanha diversidade de espécies em territórios tão exíguos? É bom lembrar que também na flora de Portugal continental existem Sideritis, mas apenas quatro espécies, o que nos coloca numa situação de embaraçosa inferioridade face ao arquipélago das Canárias. No resto da Península a situação compõe-se, cifrando-se o total peninsular em 34 espécies, mas a desigualdade entre Portugal e Espanha impõe a pergunta: sabendo nós que o género Sideritis é apenas um dos muitos exemplos que poderíamos aduzir, o que há de diferente no território continental português para justificar a nossa comparativa pobreza florística? A resposta passa certamente por uma maior homogeneidade do nosso território (o único grande contraste dá-se entre o que fica a norte e o que fica a sul do Tejo), daí resultando uma menor diversidade de habitats. Ao contrário de Espanha, não temos altas montanhas nem desertos, e — embora o Algarve se esforce valorosamete por suprir a falha — falta-nos por completo uma costa mediterrânica. Mas esta explicação simplista não cobre o caso das Canárias, e ainda menos o de La Gomera, pois também aí a diversidade de habitats é pouca: o sul da ilha é quase desértico, o norte é fresco e arborizado, e a transição entre as duas metades faz-se por uma zona central montanhosa bastante agreste, com uma altitude máxima próxima dos 1500 metros. Assim, é de supor que o factor decisivo nesta especiação desenfreada tenha sido o relevo acidentado da ilha, ao criar barreiras geográficas entre populações de plantas que originalmente seriam da mesma espécie.

Sideritis gomerae subsp. perezii Negrín


As Sideritis da Macaronésia (Canárias e Madeira) são todas muito semelhantes, e contrastam marcadamente com as suas congéneres peninsulares pelo hábito lenhoso e pelas flores tubulares com labelo e estandarte muito reduzidos. Isso justifica que tenham sido segregadas num subgénero próprio (Marrubiastrum), e sugere que todas elas sejam descendentes de uma mesma espécie ancestral. Ou seja, a presença do género Sideritis nestes arquipélagos terá resultado de um único evento colonizador, seguido de radiação e especiação. Um estudo de 2002 (Origin of Macaronesian Sideritis L. (Lamioideae: Lamiaceae) inferred from nuclear and chloroplast sequence datasets) comprova isso mesmo, estabelecendo ainda que a linhagem das Sideritis macaronésicas teve origem provável no norte de África, pois o seu parente continental mais próximo actualmente conhecido é a marroquina S. cossoniana.

Regressamos a La Gomera e às plantas hoje no escaparate, ambas endémicas dessa ilha: dentro do grupo reconhecível a que pertencem, não poderiam ser mais diferentes. A Sideritis gomerae subsp. perezii (fotos em cima) vive em taludes rochosos íngremes ou mesmo verticais na vertente sul do centro montanhoso de La Gomera, entre os 700 e os 1000 metros de altitude; é uma planta atarracada, com ramos lenhosos curtos, hastes florais crescendo na horizontal, e folhas lanudas algo retorcidas.

A Sideritis lotsyi (fotos em baixo) é uma planta arbustiva com um tronco bem formado, capaz de ultrapassar um metro de altura, com folhas lanceoladas, verdes na face superior, e hastes florais erectas, rematadas por inflorescências compactas. Mora também na região central de La Gomera, entre os 600 e os 1300 m de altitude, mas prefere lugares abrigados e não desdenha misturar-se com a restante vegetação, acantonando-se por vezes em pinhais e retamais.

Sideritis lotsyi (Pit.) Ceballos & Ortuño

03/05/2025

Paredes com bolinhas



Os botânicos preguiçosos como nós têm em muros e taludes alguns dos seus postos de observação favoritos. São lugares de fácil acesso, e a proximidade da civilização sempre nos traz algum conforto: não estamos perdidos na selva, não há lobos ferozes nem répteis venenosos à espreita, só convém estarmos atentos ao trânsito automóvel, se o houver. E não é apenas uma questão de conveniência: mesmo em bosques bem conservados, as plantas mais amigas da luz refugiam-se em clareiras, e qualquer estrada que atravesse um bosque propicia essa luz suplementar. As plantas acenam-nos à porta, não é preciso embrenharmo-nos no arvoredo para encontrarmos as raridades botânicas. Só que em Portugal isto deixou de ser assim desde que passou a vigorar uma ordem geral de limpeza de taludes. Nem os espaços nominalmente protegidos ficam a salvo do desbaste: as bermas de estrada atacadas de calvície tanto se vêem em Pitões das Júnias, nos confins do Gerês, como em Porto de Mós, na serra dos Candeeiros. Não são poucas as espécies ameaçadas que têm em bermas de estrada o seu refúgio de eleição, seja porque as estradas funcionam como clareiras, seja porque os espaços em volta foram ocupados com cultivos ou construções. Essa limpeza cega, sem qualquer efeito mensurável na prevenção e controlo de incêndios, não só torna o país mais feio e triste como implica reais perdas de biodiversidade.

O remédio é virarmo-nos para os países que não foram atacados pela loucura higienista de querer extirpar toda a vegetação espontânea das bermas de estrada ou da vizinhança das povoações. Felizmente ainda nos sobra um vasto mundo, pois tanto quanto sabemos o único país afectado por essa insanidade é o nosso. Hoje continuamos nas Canárias, e são duas as ilhas que visitamos: Tenerife e La Gomera. As plantas em destaque, ambas do género Monanthes, habitam em muros e taludes rochosos, muitas vezes junto a estradas ou edifícios. Se fossem portuguesas, a sua pequenez talvez as pusesse a salvo das roçadoras — mas nunca se sabe, pois entre nós, graças à desmesurada procura, as técnicas de desbaste da vegetação têm registado grandes progressos, e em último caso há o recurso aos herbicidas.

Monanthes minima (Bolle) Christ subsp. minima


A Monanthes minima (fotos acima) talvez não seja a menor do seu género, mas é sem dúvida minúscula: as rosetas, formadas por folhas peludas e espatuladas, tem 2 a 4 cm de diâmetro, e as flores ficam-se pelos 4 ou 5 mm. O tom por vezes avermelhado das folhas pouco contrasta com a cor do substrato terroso onde a planta costuma vegetar, tornando ainda mais problemática a sua detecção. Vivendo na vertente sul do maciço de Anaga, região bastante seca da ilha de Tenerife, procura refúgio em taludes com bom ensombramento e alguns vestígios de humidade. Lugares com esses requisitos encontram-se em paredões com orientação norte no barranco de Igueste de San Andres, que foi onde fotografámos a planta.

A Monanthes pallens, abaixo ilustrada, foi por nós avistada em La Gomera, embora esteja igualmente assinalada para Tenerife. As rosetas basais e as flores são tão miniaturais quanto as da sua congénere; contudo, as folhas imbricadas dispõem-se num padrão geométrico característico, semelhante ao da M. polyphylla mas com rosetas achatadas em vez de semi-esféricas. A M. pallens não parece incomodar-se com a secura e o calor, tanto assim que a encontrámos nas proximidades do Roque Sombrero, um dos lugares mais áridos de La Gomera.

Monanthes pallens (Webb) Christ


O género Monanthes inclui 14 espécies, das quais só duas não são endémicas das Canárias: M. atlantica, na cordilheira do Atlas em Marrocos, e M. lowei, nas Selvagens. Talvez o desejo de reunificação política desse género botânico explique em parte o apetite espanhol pelo mini-arquipélago português — que, de facto, está mais perto das Canárias do que da Madeira. Em todo o caso, nas Canárias as pelotillas (nome que significa bolinhas e é aplicado sem distinção a todas estas plantas) hão-de continuar firmemente agarradas a paredes e taludes, sem que ninguém se esforce por erradicá-las.