17/02/2025

Simplesmente branco

O branco, cor da pureza ou soma de todas as cores, é escolhido por muitas plantas para as suas flores. Não há inocência nem virgindade no gesto: o que elas querem é atrair polinizadores e ser fecundadas. Será possível correlacionar o sucesso reprodutivo com a cor das flores? É improvável. Se houvesse uma cor que suplantasse claramente as outras, então o processo evolutivo teria há muito determinado que essa fosse a única cor floral autorizada. Olhando à nossa volta, o amarelo parece ser dominante entre as plantas de floração hibernal, embora ele provenha em grande parte das exóticas (e daninhas) acácias e azedas. Mas também há malmequeres brancos que escolhem o Inverno para florir: por esta altura do ano, é o Chamaemelum fuscatum que cobre de branco os olivais de norte a sul do país. E quando chegar a Primavera juntar-se-ão à festa muitas outras cores, cada uma com os seus argumentos de sedução mas apostando forte no efeito do conjunto.

Visto do nosso cantinho europeu, o género Echium é pouco dado a variações de cor: à excepção do Echium boissieri, com flores de um branco leitoso, todas as espécies continentais portuguesas têm flores roxas ou azuis. Na Madeira, onde o género foi sujeito aos afamados processos insulares de agigantamento e lenhificação, as três espécies endémicas repartiram entre si as cores disponíveis: azul, roxo e branco. Mas no Echium portosanctensis, a quem coube a cor alva, o branco da corola é disfarçado pelo rosa dos estames proeminentes.

Foi nas Canárias que os Echium mais se diversificaram, tanto no hábito e envergadura das plantas como na coloração das flores. Para uma amostra incompleta de quão diversas podem ser estas boragináceas numa só ilha (neste caso a de La Palma), aconselha-se uma espreitadela a este texto. Além das cores aí ilustradas, há ainda, em Tenerife, o vermelho do tajinaste do Teide; e, distribuídos por diversas ilhas, encontram-se os massarocos de flor branca que são assunto do texto de hoje.

Echium simplex DC.


Quem mais se destaca entre eles é o Echium simplex, endemismo de Tenerife, restrito a zonas pedregosas de média e baixa altitude do maciço de Anaga, no nordeste da ilha. À semelhança do E. wildpretii e do E. perezii, o E. simplex apresenta um caule não ramificado (ou simples, como informa o epíteto) de dois a três metros de altura que emerge de uma grande roseta de folhas basais; e, tal como os outros dois, é uma planta monocárpica: cada indivíduo demora vários anos até florir, mas esse apogeu, marcado pela produção de assombrosa quantidade de sementes, assinala o seu fim.

Vítima das cabras assilvestradas que lhe devoram as rosetas, o Echium simplex tornou-se raro na sua área de distribuição natural. Um modo de acautelar a sua sobrevivência é o cultivo em jardins. O local onde moravam as plantas das fotos aí em cima era um jardim contaminado pela natureza: situando-se em Anaga, talvez as plantas tivessem lá ido parar por sua livre vontade; em todo o caso, já tinham extravasado o muro e cresciam junto ao caminho.

Echium aculeatum Poir.


Os outros dois massarocos de flor branca que temos para mostrar são arbustos lenhosos de médio porte. O Echium aculeatum é mais frequente em La Gomera, mas existe também em El Hierro, La Palma e Tenerife. As flores, que apresentam corola comprimida na base e cálice com lóbulos lineares muito alongados, concentram-se nas extremidades dos ramos, e têm efeito ornamental modesto. É pelas folhas que o Echium aculeatum mais facilmente se distingue de espécies próximas (como o E. leucophaeum): são coriáceas e têm as margens pontuadas por pêlos duros e híspidos; é a isso que se refere o epíteto aculeatum.

Echium bethencourtii A. Santos


O E. bethencourtii, endémico das escarpadas falésias do norte de La Palma, compensa o porte mais rasteiro com inflorescências cilíndricas vistosas, composta por flores bem abertas e destacadas dos cálices. As folhas são largas e desprovidas de acúleos agressivos. É uma planta que faria boa figura em jardins, e que só não é mais conhecida e cultivada porque, dentro do género a que pertence, a concorrência é muito forte.

10/02/2025

Salvas e candeias

A quem se embeleza, com uma maquilhagem colorida, um perfume agradável e roupa que acentua a elegância, decerto agrada captar a atenção dos outros. Cores, aromas e trajos criam uma curiosa linguagem que singulariza quem a usa, como as pronúncias regionais do português. Sucede algo semelhante com as plantas que dependem de polinizadores. Na família das plantas aromáticas como a menta, o alecrim, o tomilho, a erva-cidreira e a lavanda, a estratégia para não passarem despercebidas é ainda mais engenhosa, incluindo hastes florais altas, em cada uma das quais as flores de tons vistosos se agrupam em patamares para reforçar o seu impacto visual.

Phlomis crinita subsp. malacitana (Pau) Cabezudo, J. M. Nieto & T. Navarro


Mas esta arquitectura das inflorescências tem riscos. Nestas herbáceas, a haste é um ramo tenro que tem de servir de suporte a folhas e flores, de preferência grandes e requintadas. Não adianta, contudo, tanto investimento na cosmética e indumentária se a haste não é suficientemente resistente ao vento e à gravidade. E é nos verticilos de flores que os polinizadores têm de aterrar, por isso estes andares têm de ser bastante estáveis, sem perigo de o pedúnculo de repente se encurvar, torcer ou vergar em demasia, até quebrar.

Pelo modo como a água dos rios circunda suavemente as colunas cilíndricas de suporte a pontes, suspeitamos que um modo eficiente de uma coluna enfrentar o vento forte é ter a forma simétrica de um cilindro, ou, digamos, de um cone um pouco mais largo na base. É garantido que este formato torna os caules mais rígidos e robustos, pois é sem dúvida o mais frequente para talos, ramos e troncos de árvores. Mas deve haver algum benefício em utilizar outras geometrias porque, por exemplo, hastes florais cuja forma é aproximadamente a de um prisma de secção quadrada (e vértices arredondados, para não ser demasiado frágil nos cantos) são comuns na família Lamiaceae. É o caso das plantas das fotos acima, fotografadas em Julho de 2023 num afloramento calcário da serra Nevada, a cerca de 2000 metros de altitude. Mal se nota, porém: talvez para mitigar a perda de água nos verões do sul de Espanha, se protegerem do sol intenso ou aproveitarem a humidade da noite, estas orelhas-de-burro são tão penugentas que os caules parecem cilíndricos. O mesmo engano acontece com a Salvia phlomoides, que também prefere solo calcário, se possível pedregoso e exposto ao sol, mas é mais rara; este exemplar é da serra de Huétor, em Granada, a uns 1300 metros de altitude.

Salvia phlomoides subsp. boissieri (De Noé) Rosúa & Blanca


Que vantagem evolutiva tem esta diferença de configuração dos talos? Estudos matemáticos recentes quantificaram alguma dessa vantagem em modelos simples de talos ocos, os mais leves e económicos para as plantas e que em geral crescem mais depressa. Os autores mostraram que, para certas dimensões dos caules (diâmetros interno e externo, e altura), a secção quadrada, quando comparada com a secção circular englobando a mesma área, realmente assegura à haste maior resistência a deformações mecânicas. Por vezes, é embaraçoso reconhecer que a natureza resolveu habilmente um problema cuja solução só muito tempo depois a ciência consegue explicar cabalmente. Por isso, não nos surpreenderá que se venha a concluir, após aturada pesquisa, que a melhor haste é afinal uma versão híbrida das anteriores, isto é, oca com um bordo exterior de secção quadrada e um bordo interior de secção circular.

31/01/2025

Ferro & gelo

Sideritis glacialis Boiss.


Ensinam as obras de referência que o nome Sideritis provém do grego sideros, que significa ferro. As plantas assim chamadas teriam propriedades vulnerárias, sendo especialmente indicadas para tratar feridas causadas por armas de ferro. Tudo isto se perde nas brumas da história, pois não se sabe exactamente a que plantas os antigos recorriam para esse efeito, nem que eficácia elas tinham. O que se sabe é que o género Sideritis é dos mais diversos e populosos da flora peninsular (e macaronésica, com duas dúzias de representantes nas Canárias), e é improvável que todas as espécies comunguem das mesmas hipotéticas virtudes medicinais. De facto, há diferenças marcantes entre as Sideritis dos arquipélagos atlânticos (Canárias e Madeira) e as peninsulares: as primeiras são geralmente lenhosas e têm flores tubulares, as segundas são herbáceas e têm flores com estandarte proeminente. Parece forçado incluí-las no mesmo género e, em meados do século XIX, o inglês Philip Barker-Webb chegou a defender que a estirpe insular fosse emancipada num género autónomo, a que chamou Leucophae. Mas a proposta não vingou, e os estudos filogenéticos das últimas décadas enterraram-na de vez.

Depois de termos viajado pelas Sideritis canarinas e madeirenses, está na altura de regressarmos à normalidade peninsular. Entre Espanha e Portugal contam-se trinta e quatro espécies de Sideritis, e mais de dois terços delas são endémicas da Península. A Sideritis glacialis, exclusiva do sul de Espanha e com as maiores populações ocorrendo nos cumes pedregosos e em cascalheiras da serra Nevada, é uma planta de pequeno porte, com hastes numerosas que raramente ultrapassam os 20 cm de altura. Toda ela é bastante peluda, com folhas revestidas por pêlos longos e sedosos; as flores, que têm cerca de 7 mm de diâmetro e estão reunidas em verticilos terminais, apresentam corola amarela e lábio inferior muito desenvolvido. O hábito atarracado e a pelagem sedosa são uma resposta usual às condições agrestes da alta montanha, com a neve obrigando a longos períodos de hibernação. Se descontarmos a envergadura, a pilosidade e o aspecto compacto da inflorescência, ela não é assim tão diferente de outras Sideritis que vegetam em habitats menos desafiantes, como a transmontana S. monserratiana e a algarvia S. arborescens.

17/01/2025

Onde não estamos

Quando no Verão, vestidos com roupas leves, somos perseguidos pelo calor inclemente, podemos imaginar que é no Inverno que nos sentimos bem, desde que agasalhados dos pés à cabeça com muitas camadas de roupa. Mas basta que o frio aperte durante uns dias para sabermos que o Inverno também não nos serve. Na verdade, são poucos ou nenhuns os meses do ano feitos à medida do nosso conforto: como sabiamente cantava António Variações, é só onde não estamos que estamos bem. Seguindo esse princípio de olharmos com nostalgia para o passado e com esperança para o futuro, sem nunca nos contentarmos com o presente, é adequado, nestes dias gélidos (adjectivo evidentemente exagerado, pois isto não é a Sibéria), revisitarmos as plantas que vimos num mês de Julho, sob um calor abrasivo, em Granada.

Putoria calabrica (L. f.) DC.


A planta que hoje apresentamos, e que vive em zonas pedregosas secas, de preferência calcárias, da bacia mediterrânica (desde a Espanha até à Turquia, e desde Marrocos até à Palestina), parece ter sido nomeada por De Candolle num dia de má disposição. Putoria significa malcheirosa, o que talvez seja factual, mas não é por certo a característica mais distintiva deste arbusto. A Putoria calabrica, há que reconhecê-lo, é distintamente ornamental pela folhagem miúda e brilhante, pelos cachos de flores rosadas e pelos frutos de um vermelho lustroso. Tudo isto brota como um milagre de um emaranhado de ramos rastejantes que se diriam ressequidos de tanto serem castigados pelo sol. Teria lugar de destaque em qualquer rock garden, mas é de presumir que tenha dificuldades em adaptar-se a climas menos tórridos.

O género Putoria inclui pelo menos duas espécies. A segunda, P. brevifolia, vive também em habitats rochosos e é exclusiva de Marrocos e da Argélia; distingue-se por ter flores solitárias, em vez de agrupadas em cachos como na P. calabrica. O que salta à vista nestas duas espécies é a semelhança das flores com as das aspérulas, também da família Rubiaceae. De facto, a espécie de mais ampla distribuição das duas chamou-se originalmente Asperula calabrica, mas o género Asperula hoje em dia só inclui herbáceas. Em qualquer caso, seria menos estranho chamar Asperula a estes arbustos do que mudá-los para o género Plocama, como alguns propõem invocando ponderosas razões filogenéticas.

11/01/2025

Medusa no deserto

Barranco de Garcey, Fuerteventura
Fuerteventura, a ilha mais antiga do arquipélago das Canárias e a que se localiza mais perto do continente africano, tem recantos que lembram as imagens que a NASA tem divulgado de Marte: áreas extensas sob clima árido, com solo pedregoso castanho-avermelhado (o chamado jable), perturbadas apenas pelo assobio do vento e algum redemoinho engraçado de areia. Imersos nesta quietude, caminhamos quilómetros sem ver plantas ou ouvir o som de pássaros. É tal a monotonia da paisagem que a dado momento já nos perguntamos o que estamos ali a fazer. O bom senso diz-nos, porém, que, embora nas Canárias não haja cactos como nos desertos americanos, não faltam por aqui espinhos. São inúmeras e engenhosas as soluções de adaptação da vegetação ao solo resvaladiço, à estiagem, ao sol inclemente, às tempestades de poeira e à eventual insuficiência de polinizadores. E, de facto, bastou redobrarmos a atenção para logo detectarmos exemplares de Cosentinia vellea, um feto que suporta a desidratação completa por períodos prolongados, e que aqui aproveita as fissuras mais frescas das rochas. Animados, corremos para a meta desta aventura marciana: o barranco de Garcey, lugar costeiro sem sombra e exposto ao vento, mas que conserva a humidade após os raros chuviscos. É nele que mora uma das populações mais vigorosas desta corriola admirável, que só existe em Fuerteventura e na Grã-Canária.

Convolvulus caput-medusae Lowe


Ao contrário da quase totalidade das espécies de Convolvulus que ocorrem em Portugal, que são herbáceas anuais ou perenes (a excepção é o C. fernandesii, endemismo do Cabo Espichel), o C. caput-medusae forma arbustos de pequena estatura, com um máximo de 40 cm de altura por 60 de largura. Garantidamente, no interior destes coxins, a temperatura é mais amena, há maior humidade e o vento não é tão grande incómodo; mas, para maior estabilidade e protecção da planta, as folhas são sésseis, coriáceas, densamente pubescentes, e os ramos terminam em espinhos muito rijos. O tom geral da planta é verde-cinza, onde sobressaem as flores solitárias e pequenas (quando abertas, têm 10 a 15 mm de diâmetro), com sépalas longas e corola hirsuta, branca ou levemente rosada. A floração decorre oficialmente de Janeiro a Maio, mas em Dezembro do ano passado já havia bastantes flores.

Ainda que aprecie zonas costeiras baixas e planas (algumas fotos são de exemplares do istmo de La Pared, onde o vimos em arribas e dunas marítimas), a distribuição do C. caput-medusae em Fuerteventura estende-se à montanha de Melindraga, a mais de 500 m de altitude e distando uns 7 quilómetros do mar. A semelhança de morfologia e habitat leva-nos a desconfiar que é parente (muito) próximo do C. trabutianus, que ocorre em Marrocos. Concorda?

Alguns estudos indicam que várias espécies do género Convolvulus passam bem sem a ajuda de polinizadores, e que a produção de sementes é elevada mesmo quando só há auto-polinização. Mas a viabilidade das sementes do C. caput-medusae parece reduzir-se perigosamente com a maior frequência de invernos secos que se tem registado em Fuerteventura. Se for preciso indicar aos incrédulos mais uma consequência gravosa das alterações climáticas repentinas, esteja o leitor à vontade para se servir deste exemplo.

01/01/2025

2025

Degollada de Cofete — Fuerteventura
Até o ar livre precisa de mudar de quando
em quando de ar. A circulação é um bem
inestimável para qualquer forma da natureza.
Uma competição de ciclismo que percorra uma
montanha é uma dádiva para a montanha.
Os animais e tudo o que se move
movem-se também em nome das coisas imóveis.
Sem movimento em seu redor
a montanha cairia como um vulgar edifício antigo.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia (Editorial Caminho, 2010)

20/12/2024

Alfavaca das alturas

Em português corrente, legume significa qualquer produto hortícola habitualmente consumido em sopas ou saladas: couves, rabanetes, cenouras, feijões, tomates, etc. Acontece que muitas das plantas que produzem esses alimentos não são leguminosas. Da nossa curta lista, só os feijões provêm de plantas dessa família: couves e rabanetes são as folhas ou raízes de certas crucíferas; tomates são os frutos de uma solanácea. Assim, quem se preocupe acima de tudo com a lógica e a coerência da língua pode ser levado a chamar vegetais aos tradicionais legumes. Há contudo a questão séria de esse uso da palavra vegetais tresandar a estrangeirismo. Não terá sido pela vontade de corrigir uma falha da língua que, nos supermercados ou na boca dos falantes de português, os vegetais têm vindo a destronar os legumes. É de facto mais um sintoma (e até dos menos graves) do modo como a língua vem sendo abastardada pela imparável onda de anglicismos. Assim, é um acto de resistência continuarmos a chamar legumes às couves e cenouras, apesar de sabermos que elas nada têm a ver com as leguminosas.

Contudo, hoje falamos de leguminosas propriamente ditas. É sabido que elas têm uma importância primordial na alimentação humana, não apenas por serem consumidas directamente (aos feijões, de que há inúmeras variedades, podemos juntar o grão-de-bico, as ervilhas, as lentilhas, a soja, etc.), mas por contribuirem decisivamente para a fertilização dos solos agrícolas através da fixação do azoto. Antes da invenção dos fertilizantes químicos, os trevos eram parte obrigatória da rotação de sementeiras em parcelas agrícolas. Serviam para forragem, mas a sua principal função era recuperar os nutrientes do solo para permitir cultivos mais exigentes.

Além das leguminosas que nos são obviamente úteis, há inúmeras outras que, embora igualmente equipadas para beneficiar solos (pois não há leguminosa que o não saiba fazer), nunca foram cultivadas ou usadas como alimento. Algumas ocupam habitats agrestes e não se deixariam facilmente domesticar, outras são espinhosas a ponto de desencorajarem o mais voraz dos apetites, outras ainda, pelo tamanho insignificante, não compensariam o esforço do cultivo. Nem toda a natureza existe para nosso proveito e é bom que assim seja.

Astragalus nevadensis subsp. nevadensis Boiss.


O género Astragalus é muito populoso — de facto, é o mais populoso género botânico à face da Terra, com mais de 3200 espécies descritas, deixando o segundo classificado (Bulbophyllum, com cerca de 2000 espécies) a grande distância. Face a estes números, que haja 41 espécies de Astragalus na Península Ibérica não nos parece exagerado. A diversidade de formas e tamanhos faz com que a destrinça das espécies de alfavacas (nome que aplicamos indistintamente às espécies do género) não seja difícil, embora também ajude conhecer-lhes a distribuição. Por exemplo, pelas flores características e pelas folhas imparipinuladas de aspecto sedoso, o arbusto das fotos insere-se claramente na família das leguminosas e, dentro desta, no género Astragalus. A presença de espinhos, o aspecto geral da planta e o habitat de alta montanha reduzem os candidatos a dois. Mas na serra Nevada só um deles existe — aquele que, muito apropriadamente, se chama Astragalus nevadensis. O candidato excluído, A. sempervirens, pouco se diferencia do vencedor, mas é sabido que só ocorre nas cadeias montanhosas do norte da Península.

A maioria das espécies peninsulares de Astragalus são herbáceas, mas entre as espécies arbustivas o Astragalus nevadensis está longe de ser o mais espinhento. Nesse campeonato de agressividade dão cartas duas espécies aparentadas: o Astragalus tragacantha, restrito em Portugal à costa vicentina, e o não menos pungente Astragalus balearicus, exclusivo das ilhas Baleares.

06/12/2024

Sempre viva

Sempervivum minutum (Kunze ex Willk.) Nyman ex Pau


A serra Nevada, obrigada pelo nome que tem a cobrir-se de neve nas zonas mais elevadas, pelo menos durante o Inverno, não é confundível, seja pelo clima, vegetação ou paisagem, com o interior escarpado da ilha de Tenerife, nas Canárias. As plantas dos cumes peninsulares, se transplantadas para Tenerife, morreriam num curto prazo vitimadas pelo calor, insolação e secura; e as tenerifenhas, se fizessem a viagem inversa, não sobreviveriam ao frio e à neve. É inesperado que locais tão contrastantes abriguem plantas claramente aparentadas, mas é isso mesmo que sucede com os géneros Sempervivum e Greenovia. O primeiro está representado na serra Nevada por uma única espécie, S. minutum (nas fotos), e o segundo (que alguns autores incluem em Aeonium) conta com três espécies em Tenerife, sendo Greenovia aizoon a nossa favorita. Se nos abstrairmos da cor das flores (rosadas no Sempervivum, amarelas na Greenovia), estas duas plantas são óbvias versões do mesmo modelo: rosetas basais, mais ou menos esféricas, de folhas imbricadas; hastes florais erectas, revestidas de folhas a fingir de escamas; e inflorescências terminais compactas, formadas por flores com numerosas pétalas rodeando profusas coroas de estames. Qualquer aficionado de suculentas gostaria de as cultivar lado a lado, mas os diferentes requisitos ecológicos inviabilizam tal desejo: num lugar onde uma delas pudesse viver ao ar livre, a outra exigiria ambiente climatizado.

O género Sempervivum engloba umas 40 espécies, amiúde difíceis de destrinçar, distribuídas pelas montanhas do norte de África, Médio Oriente e Europa, a que se somam centenas de variedades cultivadas. Já aqui falámos do S. vicentei, que vimos na Cantábria, e várias outras espécies são frequentes nas cadeias montanhosas do país vizinho. A sua completa ausência em território português é difícil de entender. É verdade que as nossas montanhas continentais são baixotas, ficando aquém de todas as grandes ou médias montanhas espanholas, mas várias das espécies peninsulares de Sempervivum ocorrem também a altitudes moderadas. O S. tectorum e o S. vicentei, por exemplo, admitem viver a altitudes rondando os 800 metros, onde a neve é fenómeno raro. Essa injustiça na repartição de valores naturais entre os dois países impõe-nos uma ida a Espanha sempre que queiramos admirar estas semprevivas e outras jóias botânicas no seu habitat. É uma obrigação que cumprimos com todo o gosto.

21/11/2024

Morte na neve



Não costumamos pensar na morte quando comemos; mas aquilo que levamos à boca, se fosse dotado de consciência, não pensaria noutra coisa. Mesmo um carnívoro militante, quando tem no prato um pedaço de carne com o mesmo cheiro do animal vivo (coisa que é frequente com borrego ou cabrito), pode sentir que lhe fraqueja o apetite. Em todo o caso, a nossa espécie registou grandes avanços em dissociar a morte da alimentação. Os frangos e os bifes envoltos em celofane não têm nas embalagens qualquer alusão à existência de matadouros ou ao modo como esses animais foram mortos e retalhados. Nos programas televisivos de vida selvagem, as refeições dos grandes predadores fascinam-nos e arrepiam-nos pela violência e pelo sangue — em suma, pelo carácter animalesco que está totalmente ausente dos nossos civilizados repastos.

As plantas carnívoras não nos causam arrepios, talvez por sermos incapazes de nos imaginar no lugar dos insectos de que se alimentam, mas justifica-se mais o fascínio por elas do que por leões ou outros bichos sanguinários. Cumpre às plantas levarem existências vegetativas: não têm vontade, muito menos consciência. Como pode uma planta adoptar um comportamento tipicamente animal, matando para comer? Claro que, sendo planta, está limitada nos seus movimentos, de modo que esse acto de comer não envolve mastigação vigorosa. O que uma planta insectívora do género Pinguicula faz, depois de aprisionar os insectos na mucilagem que envolve as folhas, é segregar uma substância viscosa que contém enzimas digestivas; e, depois de completada a digestão na superfície da folha, absorver o líquido nutritivo daí resultante.

Pinguicula nevadensis (H. Lindb.) Casper


Para não repetirmos lições anteriores, pode o leitor reler o que antes escrevemos sobre as duas espécies de Pinguicula presentes em Portugal — P. lusitanica e P. vulgaris — e ainda sobre a P. grandiflora, que avistámos na Cantábria. A Pinguicula nevadensis, que ilustra o texto de hoje, segue o mesmo figurino das espécies antes apresentadas, e de facto é muito semelhante à P. vulgaris, distinguindo-se dela pelas folhas quase tão largas quanto compridas, e pela forma e coloração mais pálida das flores. Contudo, enquanto que a P. vulgaris tem uma distribuição circum-boreal (América do Norte, Europa e Ásia) ou até um pouco mais vasta (está também presente na cordilheira do Atlas, em Marrocos), a P. nevadensis está confinada a uns poucos quilómetros quadrados na metade oeste da serra Nevada, na província de Granada, onde aparece em prados húmidos e margens de riachos acima dos 2000 metros de altitude.

A P. nevadensis mostra bem que ter uma área de distribuição restrita não implica raridade, pois a planta é abundante e fácil de encontrar, nos cumes da serra Nevada, no habitat que lhe é próprio. A sua floração é estival, decorrendo entre Julho e Agosto. É nessa altura que os prados se enchem de insectos, e ela não se faz rogada em aproveitar tão generoso maná.