Orvalho fatal
Sensata, esta herbácea perene hiberna quando o frio e a chuva assomam, desaparecendo dentro de um repolho pequenino de folhas (hibernáculo) que a sustenta mesmo quando submersa. Com o início dos dias amenos, este nó de vida ganha bolhas de ar que lhe permitem flutuar, desata-se e o ciclo recomeça. Por isso, depois de localizarmos o torrão húmido adequado — ela prefere água limpa —, houve que esperar pelo Verão para a admirarmos. Nesta altura é fácil detectar as rosetas avermelhadas da orvalhinha em margens de turfeiras ou pauis, e descobrir como vive.
Atordoada com o calor, se uma mosca avista as folhas (com cerca de 1 cm de diâmetro) desta Drosera, nota que elas estão fresquinhas, com gotas brilhantes que exalam um aroma açucarado, e não hesita. É nessa pressa, por não resistir à tentação, que o insecto se perde. Esta é uma planta insectívora e usa, nesse rocio diabólico feito de secreções de glândulas na extremidade de tentáculos, uma cola que aprisiona as patas dos incautos. Alguns destes, aflitos, debatem-se agitando as asas, e assim se condenam. Neste cenário de horror, consola-nos a compaixão da natureza: mal sentem a presença da vítima, os tentáculos empurram-na para o centro da folha-colher, esta enrola-se rapidamente para asfixiar a presa e a morte é rápida. Entretanto a folha produz enzimas para desfazer o animal, ingere a sopa e reabre-se pronta para levar outra colherada à boca. [Visco bizarro esse, que não impede as folhas de reabrirem.]
Não parece natural que uma planta recorra a estes métodos para se alimentar — desconfiança de quem é animal e come plantas. Não lhe chega a fotossíntese? E o que retira da terra? De facto, nos terrenos encharcados onde ela vegeta a água corrente leva os nutrientes (em particular azoto e fósforo) e a planta precisa de os procurar por outras vias. E a técnica que desenvolveu é um expediente que funciona bem num mundo que se originou no pecado. Tão eficiente que em algumas destas plantas se desliga a produção de outras enzimas, as que lhe permitiriam retirar mimos da terra caso os houvesse, e as raízes são incipientes, com a função única de absorver água, agarrar a planta à terra e propagá-la vegetativamente.
As flores hermafroditas são minúsculas, sem perfume ou néctar, isoladas ou em espigas — mas neste caso parece que só uma flor abre de cada vez —, e recorrem frequentemente à auto-fertilização. As hastes altas protegem os potenciais polinizadores (grupo distinto do das presas, claro) da armadilha na roseta basal e tornam o conjunto mais fácil de localizar.
O género Drosera conta com mais de 180 espécies, algumas cosmopolitas, a maioria da Austrália, exibindo estratégias argutas de adaptação a quase todos os habitats (excepção previsível do marinho, desértico ou gelado). A espécie da foto dá-se bem em camas de um musgo (Sphagnum sp., que surge em cima à direita) que acidifica o solo e absorve vorazmente os nutrientes disponíveis, dando vantagem à Drosera (que conta com outra fonte de alimento) na competição por aquele espaço. Na Europa há registo de apenas três espécies de sundew, além de alguns híbridos: D. rotundifolia (cada roseta tem cerca de 5 cm de diâmetro), D. intermedia (com folhas de 1 cm e hastes florais à altura das folhas) e D. anglica (antes D. longifolia L., nome recentemente recusado, apesar das regras de taxinomia, por ser ambíguo) com folhas longas, de 3 cm de comprimento, e hastes florais muito mais altas do que as folhas.
Há séculos que as raízes e flores da orvalhinha são usadas em antitússicos, licores e corantes, mais um motivo para o seu declínio. Na Europa informada é uma espécie protegida. E há uma International Carnivorous Plant Society que milita pela sua conservação.
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