23/08/2010

Com um pé na água

Hippuris vulgaris L. — Lee Valley Regional Park, Inglaterra
O mês de Agosto mantém uma relação ambígua com a água. É o mês em que raramente chove, e em que a chuva, quando aparece, não é bem-vinda; mas é também o mês em que toda a gente vai a banhos. No mar, no rio ou na piscina, ou nas massagens de águas mornas em estâncias termais, quase nos transformamos em criaturas aquáticas. Vemos, pela secura progressiva dos campos, como o ciclo da água é também o ciclo da vida: quando a água falta, a vida esmorece. Mas é no mês em que menos água cai do céu que mais água consumimos: acreditamos que o desfalecimento da natureza é provisório e que em Setembro tudo se recompõe.

Não será pois um despropósito dedicar esta semana às plantas aquáticas. Algumas delas não serão propriamente aquáticas, mas higrófilas, vivendo nas margens de lagos e riachos ou em terrenos temporariamente encharcados. Há assim as que vivem rodeadas de água e as outras, cautelosas, que só lá põem um pé. Sendo essas plantas tão variadas e em tão grande número, talvez nos apeteça mostrar mais umas tantas na próxima semana.

Para inaugurar a série trazemos o Hippuris vulgaris, uma planta de ampla distribuição no hemisfério norte (Europa, Ásia e América) a que, por tradução do nome científico, podemos chamar rabo-de-égua (em inglês fica mare's tail). Presente no nordeste da Península Ibérica, é duvidoso que ocorra espontaneamente em Portugal. É uma planta que prefere águas paradas, com caules submersos de que brotam hastes erectas, de 20 a 60 cm de altura, enfeitadas a intervalos regulares com saiotes de folhas pontiagudas. As mínusculas manchas cor-de-rosa que se vêem acima desses verticilos (2.ª foto — clique para aumentar) são as flores, desprovidas de pétalas, que aparecem de Maio a Julho.

Os estudos genéticos que vêm revolucionando a sistemática botânica transferiram o Hippuris, que antes compunha sozinho a família Hippuridaceae, para a família Plantaginaceae. A nova organização familiar tenta agrupar as plantas de acordo com a sua árvore genealógica. Constatou-se, por exemplo, que a antiga família Scrophulariaceae era composta por várias linhagens de diferentes ascendências, o que ditou a migração de muitas plantas para as famílias Plantaginaceae e Orobanchaceae. Acontece que a família Plantaginaceae assim alargada tem um grau de variabilidade morfológica que muito escandalizaria os antigos naturalistas. A olho nu, que semelhanças pode o amador de botânica detectar entre o Hippuris, a Linaria e o Plantago? A natureza reinterpretada pela ciência tornou-se afinal mais confusa e mais ilegível.

3 comentários :

eduardo b. disse...

Algo que tende a acontecer cada vez mais, e não só no reino vegetal...

Paulo Araújo disse...

Pois é, Eduardo, não quero dizer muito mal da ciência porque afinal até vivo à custa dela - e, vendo bem, não estamos em condições de deitar pela borda fora o que há de melhor na racionalidade humana. Mas às vezes dá vontade.

Anónimo disse...

Ah... a volta à volta do "olhar o chão"!
Na terra de todos os verdes.

Abçs da bettips