07/04/2005

A física de trocar o passo

Há certos farrapos de conversa que nos transportam num ápice para um mundo irreal. Como este, ouvido na manhã sonolenta de uma barbearia:

- Não é bruxaria, garanto-lhe. É física. Se você for pela rua e pensar mal da pessoa que vai à sua frente, vai ver que ela começa a trocar o passo. E é perfeitamente natural, não há milagre nenhum nisso. A física explica tudo. Todos nós temos um campo eléctrico à nossa volta, é só estarmos atentos aos efeitos. Por exemplo, quando passa uma mulher somos forçados a olhá-la. Porquê? É o campo eléctrico dela que interfere com o nosso.

Nessa altura, e como quem faz um violento esforço para acordar, saio da barbearia para a Praça Filipa de Lencastre, onde as tílias, na sua imperturbável grandeza, garantem que o mundo não está virado do avesso. Já foram as mais bonitas do Porto, redondas e verdes como enormes sorvetes de pistácio, mas agora, aparadas as copas por causa do túnel e do hotel, parecem fusos. Não me posso distrair a contemplá-las: mesmo que ninguém me queira mal, andar a pé exige atenção constante. Retirada a vedação que tapava a entrada do túnel, a praça está diferente mas não melhor: com estacionamento no passeio e em dupla fila junto às tílias, o peão tem que meter-se ao trânsito e disputar o seu espaço com os automóveis.

Caminho agora pela rua de Vilar. Um jardim - simplório, é verdade, mas um pedaço de terra viva - está a ser destruído para ser transformado em estacionamento. Consta que é por uma boa causa: o estacionamento será reservado aos deficientes que frequentarão as instalações desportivas do bairro. Acontece que mesmo ao lado há meia dúzia de lugares que bem poderiam servir para o mesmo fim, e mais abaixo um parque de estacionamento subterrâneo quase sem uso. Quem ganhou não foram os deficientes, mas o automóvel; quem perdeu foi toda a cidade.

Vou fazer força na cabeça e pensar mal da obra da próxima vez que lá passar. Pode ser que as máquinas se avariem e a obra seja interrompida. Vou também pensar mal dos condutores que invadem passeios. Com a física tudo pode acontecer.

2 comentários :

Anónimo disse...

E com a 'química', também?
Como sempre, acerta na 'mouche'...

Anónimo disse...

Crónica do arq. Manuel Correia Fernandes no JN de 3 de Novembro
«A praça e o túnel

Conforme prometido, aqui estamos de volta à Praça de D. Filipa de Lencastre, que, nas duas crónicas anteriores, foi objecto da nossa atenção a propósito da desastrada solução dada à embocadura do túnel que ali começa (o famigerado túnel de Ceuta), tornando aquele espaço num dos mais descaracterizados e desarrumados da cidade. Dizíamos que o valor patrimonial daquele espaço é excepcional e se, para tanto, não fosse suficiente a característica arquitectura portuense oitocentista que tem presença notória no lado norte da praça, merecê-lo-iam figuras tão destacadas das nossas "artes" como são, entre outros, os arquitectos Arménio Losa e Rogério de Azevedo e, ainda, o pintor Augusto Gomes que, ali assinam exemplares notáveis das belas- artes.

Para quem não vê nesta praça mais do que o largo para onde está voltada a fachada principal duma das unidades hoteleiras de referência da cidade - o Hotel Infante de Sagres - ou o local de onde saem as ligações rodoviárias para Guimarães ou o espaço em que pontificam gigantescas tílias que ao cair da tarde se enchem de pássaros ruidosos ou, ainda, o lugar de acesso à Garagem d'O Comércio do Porto, saiba que nos quatro lados e cantos da praça se encontram obras que vale a pena observar com atenção, porque são, sem dúvida, exemplares maiores da Arquitectura dos últimos dois séculos.

Não é possível fazer, no limitado espaço de uma crónica como esta, uma exposição dos argumentos que nos levam a considerar esta praça como um caso notável da arte de bem fazer cidade. Por isso, fá-lo-ei ao longo das próximas crónicas.

A praça é um espaço quadrangular, em plano inclinado e constituído por elementos que mais parecem resultar do acaso do que dum conceito ou desenho prévio, ainda que por ali tenha sido pensado, há mais de 200 anos, construir a monumental "Praça Maior" da cidade, o que, no entanto, nunca chegou a acontecer. De qualquer forma, a praça que agora nos ocupa nasce em anos mais recentes e tem o seu desenho apoiado na histórica Rua do Almada, que lhe define o alinhamento a nascente. É por ela que quem sobe da Avenida dos Aliados tem acesso à moderna Rua de Ceuta, que, por sua vez, termina na Rua de José Falcão, mas que, não fora o abandono do plano, deveria atravessá-la e cumprir, à superfície, o papel que agora cumpre, em subsolo, o túnel de Ceuta, ou seja, ligar pelo centro os lados nascente e poente da cidade. Por tudo isto, porque outras ruas a ela chegam (Avis e Picaria) ou, ainda, porque o seu ambiente é muito marcado por árvores de grande porte, a praça é um lugar, de certo modo instável, ou seja, um espaço que é mais de passagem ou de transição e menos de estar ou de centralidade como, geralmente, são entendidas as praças. Será que é este tipo de espaços muito frequentes na cidade do Porto ou que, como este, permitem leituras deste tipo, que levam alguns a considerar que o Porto "não é uma cidade de praças" mas, antes, "uma cidade de ruas"? A questão que hoje nos interessa não é, no entanto, essa, mas, antes, a arquitectura que caracteriza este espaço, seja ele, ou não, uma praça e, portanto, o cuidado que deveria ter-se ao intervir num contexto tão singular como este. Vamos a alguns desses casos notáveis, começando por enumerar as situações que trataremos nas próximas crónicas.

São eles a Garagem d'"O Comércio do Porto" (que é o mais notável edifício da praça), o Hotel Infante de Sagres (ambos do arquitecto Rogério de Azevedo, que assina outros edifícios, também notáveis, nas imediações) e o conjunto formado pelo edifício Soares e Irmão e TLP, no gaveto da Praça/Rua de Ceuta com a Rua da Picaria (do arquitecto Arménio Losa), que ostenta, ao nível do piso térreo e voltado para a rua, um magnífico painel policromado da autoria de Augusto Gomes, uns dos mestres da pintura portuguesa do século XX.

Voltaremos, pois, à praça.