30/07/2007

Cortina rasgada



A Avenida AEP, outrora Via Marechal Carmona, permitia, não há muitos anos, que nela circulassem peões e bicicletas: era então possível ir a pé, em pouco mais de meia-hora, da Rotunda da Boavista à Senhora da Hora, em Matosinhos. E o caminho, apesar de cruzar uma zona industrial, nem era desagradável de todo: a sombra dos plátanos era generosa, e a via para peões e ciclistas estava bem resguardada do restante tráfego. Mas aos poucos tudo foi mudando: a avenida passou a ser parte de um IC, mais tarde renomeado A28, construíram-se acessos e nós de auto-estrada, abriram-se passagens desniveladas, eliminaram-se passeios. Hoje, a ex-avenida é apenas uma peça adicional da cada vez mais apertada muralha rodoviária que cerca a cidade e nos obriga a usar o automóvel até em pequenas deslocações. Com a promoção à categoria de auto-estrada, surge em 2005 a inevitável ideia do alargamento: de momento, em Portugal, auto-estrada que se preze tem no mínimo três faixas em cada sentido; contudo, esse é apenas um estádio intermédio, altamente provisório, na cadeia evolutiva que nos levará às quatro, cinco ou sabe-se lá quantas mais faixas.

Na altura, eu e os meus colegas da Campo Aberto escrevemos a várias entidades (Estradas de Portugal, Instituto do Ambiente, Vereadores do Ambiente e do Urbanismo da Câmara do Porto), manifestando preocupação pelo destino dos mais de 100 plátanos adultos da ex-avenida, e pedindo informações adicionais sobre o projecto. Como é hábito em Portugal, não nos chegou qualquer resposta, mas também não voltámos a ouvir falar do projecto. Notícia recente no JN assegura-nos que ele não foi abandonado - o que só mostra como por cá as más ideias resistem facilmente às mudanças de governo. Quanto aos plátanos, uma fonte (não de água, mas falante) da empresa Estradas de Portugal terá dito o seguinte: «Apesar de ser feito um esforço no sentido de preservar a cortina arbórea existente ao longo de parte do IC1, será necessário afectar algumas dessas árvores para permitir a articulação da rede viária de cariz mais local.»

Não há que enganar: os rasgões na cortina hão-de ser grandes e sem remendo possível. Mas, como de nada serve enviar nova carta, limito-me a reproduzir textualmente, sem omitir nomes, aquela que a Campo Aberto enviou em Março de 2005 à Estradas de Portugal, E.P.E. (as outras três cartas tinham teor semelhante). Não vejo razão para lhe mudar sequer uma vírgula, e pode ser que desta vez alguém a leia.



......................................................Exm.º Senhor
......................................................Presidente do Conselho de Administração
......................................................EP - Estradas de Portugal, E.P.E.
......................................................Praça da Portagem
......................................................2809-013 ALMADA

.......Porto, 3 de Março de 2005

.......Assunto: alargamento da Avenida AEP (Porto)

.......Exm.º Sr. Engº António Carlos Laranjo da Silva,

.......Foi noticiado no jornal O Primeiro de Janeiro de 18 de Fevereiro de 2005 que está em estudo um possível alargamento da Avenida AEP, abrangendo o lanço da IC1 entre o Nó de Francos (concelho do Porto) e a Ponte de Leça (concelho de Matosinhos). O projecto, segundo a notícia, encontra-se em discussão entre a EP – Estradas de Portugal e as autarquias do Porto e Matosinhos para «acerto de pormenores», prevendo-se o seu envio ao Instituto do Ambiente, para análise do impacto das alterações propostas, até ao Verão do corrente ano. O Sr. Secretário de Estado das Obras Públicas, Eng. Jorge Costa, em declarações ao mesmo jornal, afirmou acreditar que a obra seja lançada e adjudicada no início de 2006.
.......A associação Campo Aberto vem manifestar a sua extrema preocupação pelas possíveis consequências desta empreitada no troço da Avenida AEP incluído no concelho do Porto. Esta estrutura viária, que corresponde à antiga Via Marechal Carmona e divide ao meio a zona industrial de Ramalde, foi construída na década de 1950 segundo o Plano Regulador da Cidade do Porto da autoria de Antão de Almeida Garrett. Acompanhando de ambos os lados a zona industrial, existe uma arborização contínua e homogénea, formada por mais de uma centena de plátanos de grande porte com cerca de cinquenta anos de idade. Até há poucos anos essa arborização estendia-se por toda a antiga Via Marechal Carmona, mas o desnivelamento do seu troço final levou ao arranque das árvores entre o viaduto de Antunes Guimarães e a rotunda AEP. Pelo seu número, pelo porte saudável que exibem, pelo seu valor paisagístico e ambiental, os plátanos sobreviventes constituem um património natural a preservar a todo o custo. Embora a notícia suscite dúvidas, pois fala de um alargamento para três faixas em cada sentido quando de facto tais faixas já existem (embora uma delas seja para transportes públicos), queremos deixar bem claro que consideramos o alargamento dessa via, e consequente abate de ainda mais árvores, como um atentado lesa-património que nenhum estudo de mobilidade viária pode justificar.
.......Há um outro aspecto do projecto divulgado que nos deixa perplexos: a construção de dois novos viadutos sobre esse troço da Avenida AEP, que ficaria com nada menos que três viadutos numa extensão de poucas centenas de metros. É pouco crível que as necessidades de deslocação entre as duas metades da zona industrial, que não registou expansão visível nas últimas décadas, justifiquem uma tal profusão de viadutos, construções pesadas que degradam inevitavelmente a paisagem urbana; e, em qualquer caso, é bom lembrar que o actual viaduto já serve o mesmíssmo propósito de conectar os dois pólos industriais.
.......Em conclusão, e considerando que o seu impacto negativo é inteiramente desproporcionado dos possíveis ganhos em fluidez de tráfego (que são sempre provisórios, pois maiores facilidades de circulação atraem sempre mais automóveis), somos enfaticamente contra a anunciada intervenção no troço portuense da Avenida AEP, tanto no que toca ao seu possível alargamento como à construção dos viadutos – os quais, se o alargamento não o fizer, também obrigariam ao sacrifício de numerosos plátanos, e ao consequente rompimento da continuidade paisagística desses dois alinhamentos arbóreos, notáveis apesar da amputação que sofreram no troço final da Via.
.......Vimos solicitar a V. Ex.ª que, com a brevidade possível, nos sejam facultadas informações detalhadas sobre o projecto.

.......Com os melhores cumprimentos,
.......Paulo Ventura Araújo



Fotos de Manuela D. L. Ramos (Março 2005)

4 comentários :

Pedro Nuno Teixeira Santos disse...

- Todas as cartas merecem uma resposta. É o mínimo, é uma questão de educação. Como a Estradas de Portugal (ainda) é uma empresa pública acresce o dever de responder (entenda-se, servir) os cidadãos. O que me aconteceria, como professor, se começasse a recusar-me receber e prestar esclarecimentos perante os encarregados de educação?

- Já houve uma altura em que a antiga JAE plantava árvores nas bermas das estradas. Foi um trabalho inestimável...na altura, Gonçalo Ribeiro-Telles e Francisco Caldeira Cabral deviam ser leitura frequente naqueles gabinetes.

- Os tempos mudaram e não foi apenas no nome que a JAE parece ter mudado...de repente, as árvores começaram a ser vistas como um empecilho.

- Há que encará-lo...os portugueses têm um problema com as árvores. De alguma forma, elas parecem ser um permanente obstáculo entre nós e o progresso...parece perseguição!

Paulo Araújo disse...

É verdade que todas as cartas merecem resposta - mas isso de bater a uma porta sempre fechada acaba por desgastar. Só quando há algum tipo de exposição pública - seja através da comunicação social, seja através de blogues - é que os poderes púlicos, fingindo alinhar no jogo democrático, se prestam a responder.

Quanto à ex-JAE, agora que lhe cabe também fazer auto-estradas, não há-de querer largar o osso. As árvores não pesam nada em tal equação. O que pode surpreender é que a Estradas de Portugal tenha maior poder de pôr e dispôr, numa via que afinal é urbana, do que a própria Câmara Municipal. Mas se calhar esta é uma dúvida ingénua, pois Câmara e Estradas de Portugal devem concordar no essencial: quanto mais estradas houver e mais largas forem, melhor será.

Anónimo disse...

Só umas notitas impublicáveis:

1. Não responder às cartas é uma estratégia dos burocratas do Estado todo o poderoso para não se comprometerem. A falta de regras dá para tudo.

2. Diz-se que na ex-JAE (que até o ditador fascista Salazar dizem que temia...) se faziam grandes negociatas com as madeiras, sobretudo as preciosas, das árvores da beira da estrada; é de lembrar, por exemplo, a tentativa, aqui há anos, de decepar os plátanos da Circunvalação, salvos in extremis, por alguns cidadãos empenhados que pressionaram a Câmara do Porto para intervir. Agora a JAE já não é JAE, mas continua a ser JAE. Ou seja, à trampa mudou-se o nome e as moscas lá ficaram regaladas a lamber-se...

3. Este corredor de plátanos da AEP vinha de Francos até à Senhora da Hora; hoje está reduzido a menos de um terço, mas os cangalheiros do que ainda restar de belo, lá se vão encarregar do resto.

4. Quanto às estradas, prevalece a ideologia do nacional-estradismo e da bacoquice nacional-automobilística e assim há-de ser ainda por muito tempo, até porque essa ideologia inquinou tudo (senão, veja-se num destes comentários acima, expresa a ideia segundo a qual o facto de haver uma "muralha" de estradas à volta do Porto, obriga as pessoas a usar o automóvel para tudo e mais alguma coisa. E assim estão todos desculpados, façam o favor de prosseguir. Ora enquanto assim pensarem mesmo os mais conscientes e indignados com esta barbaridade, onde é que vamos chegar?) Não concordo nada que o facto de haver muitas estradas obrigue a andar de automóvel para todo o lado. Também há o Metro, os comboios sub-urbanos, os autocarros, um resto de eléctrico. Usam o automóvel de forma irracional porque sim, porque o país é atrasado e sub-desenvolvido. E porque os deixam. As Câmaras não condicionam ruas ao trânsito - quantas há no Porto ? as que há são uma caricatura. A maior parte das câmaras nem sequer quer comemorar a ridicularia do Dia Europeu sem carros. Boicotaram completamente essa tentativa mínima de tentar chamar a atenção para o problema.

5. O loby do estradismo (apresentado como sendo "desenvolvimento"), do petróleo (e das guerras por ele), da construção civil, da indústria automóvel, do Estado- que-quer-impostos, da mentalidade consumista, do ter e andar de automóvel dá estatuto social (!)(um conceito da adolescência transferido em escala gigantesca para o mundo dos adultos), etc., desaguam no estado de coisas que o post aqui em causa retrata. E as estradas vão continuar a avançar, como um rolo compressor, por cima da Natureza, das cidades, das pessoas...

Paulo Araújo disse...

Carlos Conceição:

Concordando com a generalidade do que escreveu, quero todavia deixar um reparo. Eu não quis de modo nenhum dizer que a muralha de auto-estradas nos obriga a usar o automóvel em todas as circunstâncias; o que quis dizer é que há percursos que antes se faziam facilmente a pé e que hoje, por causa da tal muralha, são impossíveis (ou são um perigo mortal para quem os tenta). Além do exemplo aqui referido, muitos outros há no Porto e também em Gaia. Já escrevi sobre isso várias vezes no blogue; por exemplo aqui. E o metro, o comboio e os autocarros não chegam de facto a todo o lado. Pela minha parte, nem sequer conduzo e prefiro ir a pé sempre que me é possível.