12/04/2008

O princípio da aliança*

«Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou: a mesma chuva pareceu intimidar-se, um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu de tudo porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou. O patrão Vasques, em vez de retroceder para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande. Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um pesadelo. O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa incómoda.

Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhámos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala adentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se o som dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos eléctricos tinham também uma socialidade connosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.

Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse, do guarda-vento entreaberto, «Podem sair», e disse-o como uma benção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e, avançando para o Moreira, disse-lhe um «até amanhã» cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.»

Fernando Pessoa, Livro do desassossego (Assírio & Alvim, 2001)

*Letras em Lisboa - Portugal, Brasil, África
Casa Fernando Pessoa / Teatro Municipal de São Luiz
(só até amanhã)


Na foto: Daucus carota (cenoura-brava)

2 comentários :

Cárabo disse...

Acabo de conocer este blog. Me ha gustado muchísimo. Es muy interesante y a partir de ahora lo tendré entre mis favoritos.
Daucus carota es la zanahoria en castellano.
Saludos

Maria Carvalho disse...

Seja bem-vindo.