Chambre das pombas
Ammi trifoliatum Trel.
As pombas sempre voltam a casa, o que serve de desculpa para regressarmos, um mês depois, ao assunto dos pés-de-pomba açorianos. Pé-de-pomba é o nome que, seguindo a sugestão do Portal da Biodiversidade dos Açores, damos às umbelíferas açorianas do género Ammi. Curiosamente, esse mesmo portal apenas atribui tal designação vernácula à espécie Ammi huntii, de paradeiro desconhecido e existência incerta. As duas espécies que realmente existem, A. seubertianum e A. trifoliatum, não teriam recebido a graça de um baptismo popular. A imaginação do povo pode às vezes ser perversa, mas é inusitado que atinja tal requinte de abstracção.
Para tirar melhor proveito desta lição, o leitor terá a paciência de recapitular a lição anterior sobre o Ammi seubertianum. Observe atentamente as fotos e compare-as com as do A. trifoliatum que hoje ocupam a montra. Há-de notar que as folhas do A. seubertianum são mais largas e lustrosas, com um serrilhado mais regular nas margens; e, embora as fotos não o mostrem, são duras, algo suculentas, enquanto que as do A. trifoliatum são finas e maleáveis. O A. seubertianum é robusto e compacto, o A. trifoliatum é desgrenhado. De facto, as duas plantas nem são muito parecidas, e ao vivo certamente não se confundem. Também a ecologia e a distribuição as separam: o A. seubertianum distribui-se predominantemente por falésias costeiras, ao passo que o A. trifoliatum vive afastada do mar em crateras e ravinas a altitudes elevadas. De todas as ilhas do arquipélago, só numa delas, o Pico, é que as duas espécies coexistem.
Acontece que aquilo que salta à vista quando observamos as plantas no seu habitat pode não ser evidente em material seco de herbário. Há 40 anos, apesar de já então haver ligações aéreas regulares, não seria tão fácil como hoje dar um salto às ilhas para esclarecer dúvidas taxonómicas. Tudo isso, somado à confusa história que rodeia o género Ammi nos Açores, ajudará a explicar por que decidiu Franco, na sua Nova Flora de Portugal (vol. 1, 1971), decretar que nos Açores existia apenas uma espécie endémica de Ammi, a que chamou A. huntii. Eric Sjögren, no seu Plantas e Flores dos Açores (Os Montanheiros, 2001, edição trilingue), parece ter adoptado idêntica opinião, embora chame A. trifoliatum a essa hipotética espécie única. Não é pois de estranhar que sobre ela diga que "a distribuição em altitude e as preferências ambientais ainda são pouco conhecidas".
Para ajudar a deslindar o mistério dos Ammi nos Açores, três botânicos espanhóis, Esther Bueno, Ana Juan e Manuel B. Crespo, publicaram em 2009, nos Anales del Jardín Botánico de Madrid, o artigo Lectotypification of three endemic taxa of Ammi L.(Apiaceae) from the archipelago of the Azores. Os autores notaram que para nenhuma das descrições publicadas das três espécies tinha sido designado um espécime tipo — ou seja, um espécime guardado em herbário que servisse como padrão (ou tipo nomenclatural) para aferir se uma dada planta pertencia ou não à espécie descrita. Nos primórdios da taxonomia botânica sucedia por vezes elegerem-se vários espécimes para, no seu conjunto, funcionarem como tipo nomenclatural, o que era causa de confusão se posteriormente se verificasse que esses espécimes não pertenciam todos à mesma espécie. Seria como descrever um certo mamífero tomando simultaneamente como modelos um chimpanzé e um gorila. Para as três espécies A. huntii, A. trifoliatum e A. seubertianum, os autores escolheram como tipo nomenclatural (diz-se neste caso lectótipo) plantas depositadas no herbário dos Kew Gardens. Para o A. huntii havia um só exemplar em relativas boas condições, e pela descrição que dele é feita tem mais semelhanças com o A. trifoliatum do que com o A. seubertianum. Mas há importantes diferenças com ambos, por exemplo no facto de ter brácteas trífidas, o que o aproxima mais da espécie continental A. majus (naturalizada nos Açores). Embora os autores do artigo não tirem qualquer conclusão, não é improvável que aquilo a que H. C. Watson chamou Ammi huntii fosse afinal um exemplar atípico de A. majus. Daí que há mais de um século ninguém tenha avistado, colectado ou fotografado a planta em nenhuma das ilhas do arquipélago.
Das outras duas espécies de Ammi açorianas completamos hoje no blogue a prova fotográfica da sua existência. Com o detalhe de, no caso no Ammi trifoliatum, o termos feito do modo mais difícil, escolhendo para a sessão fotográfica uma das ilhas onde a planta é mais escassa. De facto, de todo o rectângulo da Terceira, é só na maravilhosa Rocha do Chambre, onde faz companhia à Lactuca e à Pericallis, que esta pomba parece pôr o pé.
Rocha do Chambre, ilha Terceira
2 comentários :
As ilhas dos Açores devem ter cheiros bons. Afigura-se-me.
Rocha do Chambre:). É um enlevo olhar a forma como a flor se dispõe. Pomba é um bom nome.
Obrigada.
Sempre belas as paisagens e as flores açóricas!!
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