11/11/2013

A graça de uma cura



Gratiola officinalis L.


Era uso dar graças ao Criador por tudo quanto existia, entendendo-se que dEle vinham sobretudo as coisas boas. Essa gratidão passou de moda, mas plantas como esta, cujo nome Gratiola deriva do latim medieval gratia Dei, que significa graças a Deus, são testemunho dos tempos em que a devoção guiava as vidas. Só a misericórdia divina explicaria a existência, à mão de ser colhida, de uma erva tão extraordinariamente eficaz, nas palavras do botânico suiço Caspar Bauhin em 1623, «para expelir os humores malignos, tanto por cima como por baixo, e para cicatrizar feridas frescas». Com os avanços da farmacopeia e a menor crença na bondade divina, aliados ao facto de a planta ser algo tóxica e provocar intensa irritação das mucosas digestivas, o seu prestígio curativo foi-se apagando. Mas ninguém lhe tira do B.I. o nome latino onde a graça divina é sublinhada pelo epíteto officinalis, denunciador de uma ligação histórica às artes do boticário. É aliás providencial, sinal talvez de que as coisas deste mundo não estão tão mal ordenadas como às vezes parece, que se tenham encontrado fármacos modernos para substituir a Gratiola officinalis, pois a erva-dos-pobres, como já foi chamada, fez-se tão escassa no nosso país que não há pobres nem ricos que lhe cheguem. (À farmácia, pelo menos, ainda os ricos vão chegando.)

Frequentadora, tal como a sua congénere ibérica G. linifolia, de margens de cursos de água, com preferência por leitos de cheia e por águas baixas e de fraca corrente, a G. officinalis tem visto o seu habitat desaparecer a um ritmo acelerado com a construção das barragens, açudes, represas, piscinas de recreio e todo o género de acrescentos postiços com que se artificializam rios e ribeiras. Assim, apesar de a Flora Ibérica a assinalar em sete províncias portuguesas, principalmente nortenhas (Alto Alentejo, Beiras, Douro Litoral, Minho e Trás-de-Montes), até hoje só foram registados no portal Flora-On três ocorrências da espécie em pontos bem afastados do país: Barrancos, Vila Velha de Ródão e Melgaço.

De facto, tratando-se de plantas tão distintivas como as duas gracíolas presentes em território nacional, a escassez de registos só pode explicar-se pela raridade. As duas plantas lançam tufos de hastes erectas com 20 a 50 cm de altura, com as da G. linifolia um pouco mais atarracadas; têm folhas opostas, quase amplexicaules, mais curtas as da G. linifolia, as da G. officinalis medindo até 5 cm de comprimento e com margens dentadas; as flores, que são axilares e solitárias, com longos pedúnculos, apresentam uma corola acentuadamente recurvada, sendo brancas com laivos de creme as da G. officinalis, e rosadas com centro amarelo as da G. linifolia (outras diferenças mais subtis são indicadas nesta página).

A G. officinalis faz companhia ao feto-dos-brejos nas pesqueiras de Melgaço, num rio Minho que permanece milagrosamente livre de barragens no troço que faz fronteira com a Galiza. Oxalá assim se mantenha nas próximas décadas.

3 comentários :

bea disse...

Independente das propriedades medicinais é a sua beleza, o verde intenso das folhas e o breve das flores jogam bem um com o outro. Graças a Deus que ela há.
E obrigado pelas fotos. Creio ser uma espécie que nunca encontrei nos meus trilhos.
Longa vida para ela

Carlos M. Silva disse...

Olá

Como sempre texto extraordinário, pela informação disponibilizada que enquadra tão perfeitamente bem com as belas fotos.
Como noutro post comentei ..acho extraordinária a vossa pesquisa e busca a cada recanto deste país. E apesar de tudo ..parecem existir bem mais do que eu e maioria das pessoas imagina.
Olhava a planta que obviamente nunca vi ou conhecia, nomeadamente a estrutura do caule e as folhas (mas não a flor, que é diferente), e fez-me lembrar uma também muito rara que (até agora) apenas encontrei em Sanábria mas que existirá por cá, creio que na zona de Montesinho, que é a Odontites vulgaris. Pertence a outra família é certo mas tem algumas semelhanças, pelo menos ao leigo que sou.

Abraço e obrigado
Carlos M. Silva

Paulo Araújo disse...

Olá, Carlos.

Obrigado pelo comentário. O segredo para encontrarmos estas coisas é simples: vamos à procura de outras que em geral não encontramos. Melgaço até foi uma excepção, pois vimos mesmo aquilo que queríamos ver (a Nymphoides peltata), mas só à segunda visita.

Sim, o Odontites tem uma folhagem algo semelhante à da Gratiola, com os nós das folhas mais espaçados ao longo do caule. Qualquer dia ele também aparece por aqui (outra espécie que não a que mencionas, e que nunca vimos).

Abraço,
Paulo