04/11/2013

O admirável feto das neves


Dryopteris expansa (C. Presl) Fraser-Jenk. & Jermy


Às vezes é mais fácil deixarmo-nos embalar por ideias feitas, mesmo quando a realidade se empenha em contradizê-las. Imaginamos, nós que não esquiamos nem somos adeptos do turismo de Inverno, que a serra mais alta de Portugal continental se reveste invariavelmente, de Novembro a Março, com um manto da mais alva e fofa neve disponível nos cartazes das agências de viagens. Mesmo que o Photoshop seja convocado para acentuar a brancura e preencher as falhas; mesmo que às vezes as fotos nem sejam da serra da Estrela, mas sim dos Alpes; mesmo que na estância de esqui se prefira a neve artificial àquela pouco fiável que tomba do céu — mesmo sabendo disso tudo, acreditamos que a serra é branca no Inverno, e que, além dos sacos plásticos usados na popular prática do scu, há debaixo da neve vidas em suspenso à espera do degelo. E acreditamos que é em Abril que na serra tudo recomeça: em seis ou sete meses há que dar sentido a um ano inteiro.

Foi em Setembro, já a temporada de 2013 declinava, que pudemos finalmente observar, graças à amabilidade de Alexandre Silva, o Dryopteris expansa, ou feto-macho-das-neves como passaremos a chamar-lhe. Era o cromo que nos faltava dos cinco fetos ou aparentados que, em Portugal, são (quase) exclusivos da serra da Estrela: os outros são o Dryopteris oreades, Lycopodium clavatum, Cryptogramma crispa e Asplenium septentrionale, existindo o último também em Bragança e na ilha da Madeira. Se os ordenarmos por grau decrescente de raridade, a medalha de ouro cabe ao Lycopodium clavatum, ficando a prata para o D. expansa e o bronze para o Cryptogramma crispa. Trata-se de um pódio pouco invejável, pois significa, para essas plantas, que elas estão à beira de desaparecer do nosso país. Só nos pontos mais altos da serra da Estrela é que as temperaturas médias são suficientemente baixas para permitir a sobrevivência dessas espécies adaptadas ao frio e aos invernos impenitentes do norte da Europa. E é previsível que o aquecimento global venha agravar as suas condições de vida.

Como é típico do género Dryopteris, o feto-macho-das-neves mantém estreitos laços de família com outros fetos a que muito se assemelha e dos quais se destrinça com dificuldade. Alguns deles estão consabidamente ausentes do continente português, e por isso não nos devem preocupar. Um outro não frequenta altitudes tão elevadas. Resta, para nos confundir, o D. dilatata, que se supõe, apesar dos consideráveis obstáculos geográficos, ser o resultado do matrimónio entre o D. expansa e o D. azorica. (Há quem se dedique a coscuvilhar a vida amorosa dos fetos, fazendo revelações sensacionais em revistas apresentadas como científicas mas com indisfarçável pendor cor-de-rosa.) Se pudéssemos ser francos, admitiríamos que na prática o D. dilatata e o D. expansa são indistinguíveis — ou, pelo menos, que muitas vezes não se pode tirar qualquer conclusão segura examinando apenas uma ou duas folhas. Porém, estando em causa a nossa reputação, nada como transcrever o cristalino receituário dos manuais que ensinam estas coisas. O primeiro passo é examinar o DNA: o D. expansa é diplóide (84 cromossomas), enquanto que o D. dilatata é tetraplóide (168 cromossomas). Na falta de equipamento de campo para proceder a tal contagem, a morfologia das plantas pode dar alguma ajuda: o D. expansa tem, em geral, as pínulas basais mais próximas da ráquis muito desenvolvidas, de comprimento pelo menos metade do da pina correspondente; além disso, as pínulas do D. expansa costumam ser planas, enquanto que as do D. dilata são algo convexas. Para quem tiver a paciência de esperar, há ainda a bonita cor alaranjada que as folhas do D. expansa adquirem em Setembro, antes de secarem e desaparecerem: ao D. dilatata, por ter folhas persistentes no Inverno, está vedada essa variação cromática.

Na serra da Estrela, o D. expansa ocorre acima dos 1700 m, em populações dispersas e escassas, com uma ou duas dezenas de indivíduos nos melhores casos. Em contraste, o seu congénere D. oreades é frequente e aqui e ali abundante nas cumeadas da serra. Para visitarmos o D. expansa, vimo-nos obrigados a descer uma cascalheira vertiginosa próxima dos Cântaros e a regressar esbaforidamente pelo mesmo caminho. Logo depois estava-nos reservado um prémio pelo esforço, pois encontrámos um novo núcleo da espécie (meia dúzia de plantas) na zona das Salgadeiras, de muito mais fácil acesso.

2 comentários :

bea disse...

Quem corre por gosto também se cansa:)

Mas, quem sabe, os fetos mereçam.

Obrigada pela mostra

Anónimo disse...

Fantástico post.

Abraço
AC