Cenoura com sal
Daucus halophilus Brot.
As cenouras do nosso dia-a-dia não são mais do que as raízes tuberosas de uma umbelífera de flores brancas, Daucus carota, que é espontânea e abundante em Portugal continental e nos arquipélagos atlânticos. Valha a verdade que a cenoura-dos-quintais (Daucus carota subsp. sativus) é de uma estirpe seleccionada, com raízes maiores e sabor menos amargo do que a cenoura silvestre, mas pode ser tentador experimentar a custo zero as plantas mais ou menos comestíveis que crescem livremente pelos campos. O risco de uma identificação errada é porém sério, pois não são poucas as umbelíferas mortalmente venenosas aparentadas com a cenoura (eis dois exemplos).
Mesmo a cenoura silvestre está sujeita a variações importantes, justificando a divisão do Daucus carota num sem-número de subespécies. Habitualmente é uma planta alta, capaz de ultrapassar um metro de altura, com caules rugosos, folhas duas a três vezes divididas e de textura fina, brácteas pinatissectas com segmentos lineares, e raios da umbela que se enrolam sobre si mesmos aquando da frutificação. No género Daucus os frutos são peculiares, com costelas longitudinais armadas de espinhos eriçados (foto aqui). Entre as umbelíferas espontâneas da nossa flora, só as dos géneros Torilis e Pseudorlaya, que em geral são muito mais débeis, produzem frutos com arquitectura semelhante.
Fotografada ainda as flores mal despontavam, a filiação da planta acima exposta ao género Daucus não é controversa, mas o seu estatuto taxonómico tem suscitado opiniões divergentes. Adoptar uma opinião ou outra não é coisa de somenos, já que a planta em causa é endémica da faixa litoral portuguesa desde a Ericeira (na Estremadura) até Faro, com o seu contingente mais numeroso albergando-se nas arribas do cabo de São Vicente. Trata-se de decidir se o que temos na costa vicentina é uma espécie endémica, claramente distinta das demais espécies de Daucus, ou apenas mais uma das quinze subespécies de Daucus carota listadas na flora europeia, algumas delas de diferenciação problemática. Uma decisão dessas não é neutra, e tem consequências na protecção legal, por enquanto inexistente, de que a planta poderá ou não vir a beneficiar.
Quando Brotero descreveu a planta, no tomo 2 (de 1827) do seu Phytographia Lusitaniae Selectior (texto integral disponível aqui), baptizando-a com um nome (halophilus) que reflecte a sua predilecção pelo ar salgado da beira-mar, não teve dúvidas em distingui-la das suas congéneres pelas hastes simples e atarracadas, pelas brácteas com lóbulos largos em vez de lineares, pela ornamentação dos frutos. João do Amaral Franco, no vol. 1 (de 1971) da Nova Flora de Portugal, manteve este Daucus como espécie autónoma, mencionando ainda, como pormenor distintivo, a textura algo suculenta das suas folhas. Por essa época, contudo, já a unanimidade havia sido quebrada: em 1935, em nota publicada no Boletim da Sociedade Broteriana, Gonçalo Sampaio despromovera o D. halophilus à condição de variedade do D. hispanicus (o qual, por sua vez, é tido hoje como uma subespécie do D. carota). Antonio José Pujadas Salvá, autor do capítulo sobre o género Daucus incluído no vol. X da Flora Ibérica (publicado em 2003), aproveitou a deixa de Sampaio, embora tenha desagravado o castigo: o D. halophilus, segundo ele, é uma subespécie do Daucus carota, ainda que aos olhos inocentes de um leigo as duas plantas se pareçam uma com a outra bastante menos do que um cavalo com um burro.
Como a Checklist da Flora de Portugal segue de modo mais ou menos automático as opções da Flora Ibérica, nos últimos anos tem prevalecido entre nós (e também no portal Flora On) o critério de Pujadas, apesar das reservas que Carlos Aguiar e Jorge Capelo, dois dos responsáveis da Checklist, sobre ele exprimiram.
1 comentário :
Tão linda! Parece um bouquet
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