Damas das searas
A disseminação das plantas dióicas (aquelas com flores unissexuadas, estando as masculinas e as femininas em pés diferentes) é um processo minado de riscos. Talvez por isso quase todas as plantas continentais que colonizam ilhas são monóicas, uma vez que o reencontro no novo habitat de um exemplar masculino com um feminino é uma questão de sorte. Mas as flores hermafroditas também têm uma empreitada difícil. Apesar de as estruturas masculinas e femininas estarem presentes na mesma flor, parece ser-lhes vantajoso activar cada uma no momento apropriado, poupando recursos e optimizando o procedimento que conduz à fertilização. Simplificando, digamos que a flor é sobretudo masculina no início da sua função e depois, até se formar o fruto, é a componente feminina que domina. Por isso, a polinização tem de ser regulada por um mecanismo que permita sincronizar estas fases. Enquanto apronta os sacos de pólen para que este possa ser levado eficientemente pelo polinizador, é preciso que os nectários se vão enchendo, a flor se vá aformoseando e, se possível, perfumando para que os insectos reparem nela. Depois os estames alongam-se, afastando-se da coluna central da flor onde protegeram o estigma, reduzindo desse modo a possibilidade de auto-polinização. Uma vez fertilizada, as sépalas e pétalas perdem a coloração e a flor liberta-se desses adereços, para que o que sobra passe despercebido aos predadores e o fruto se forme em segurança.
É este, em resumo, o ciclo de vida da flor de Nigella. Atentemos aos detalhes da espécie das fotos: as sépalas são grandes, de cor azulada; as pétalas menores, brancas, bilabiadas, com o lábio inferior bífido de ápices claviculados (como pontas de fósforo); os numerosos estames, que se separam na fase masculina da flor; e o estigma ao centro, inicialmente cingido pelos estames. As flores são solitárias e as mais altas são as primeiras a desabotoar, o que leva a crer que os polinizadores tendem a descer perto da haste mas a planta impede-os de encontrar mais flores viáveis, incentivando-os a mudar de pouso e assim garantindo que a polinização é cruzada. O fruto é uma cápsula grande com muitas sementes escuras (detalhe a que alude o nome latino Nigella).
Em Portugal ocorrem três espécies deste género. Todas parecem apreciar solos bem drenados e locais expostos à luz, como sejam searas e outros campos de cultivo. A N. damascena é a mais frequente, com folhas finas e muito divididas (para não perder muita água por evaporação, já que estas são herbáceas anuais de regiões quentes) a envolver a flor, dando-lhe um ar de castelo de conto de fadas ameaçado por silvas perigosas (chamam-lhe damas-entre-verde ou barbas-de-velho). Encontram-se em locais pedregosos de prados, olivais e pomares de sequeiro. A N. papillosa é um endemismo ibérico e, por cá, muito raro: no portal Flora On está registada apenas no Alentejo e nos concelhos transmontonos de Mogadouro e da Alfândega da Fé. A flor tem sépalas azul-violeta, anteras púrpura e um cabelinho denso de folhas. Em Julho, encontrámos junto ao rio Maçãs uns poucos exemplares da terceira espécie de Nigella, que se distingue das anteriores pela folhagem e pelos adornos das flores. A N. gallica é natural do sul de França e da Península Ibérica; as Floras indicam que, por cá, a sua distribuição se restringe à metade norte.