Aeroportos & charcos
Há uns anos, a propósito da extinção em Portugal da orquídea Epipactis palustris, lembrámo-nos da carta que, a 4 de Julho de 1901, Gonçalo Sampaio escreveu a Júlio Henriques, onde anunciava «Cheguei ante-hontem de Ilhavo, onde encontrei algumas plantas interessantes... A Epipactis palustris é ali abundantissima e forma, em localidades, pradarias em que se podia colher aos carros. Colhi muitos exemplares...» Nessa altura, um leitor anónimo reagiu perguntando «Desapareceu? Porquê e onde?» Curiosamente, face ao extravio de uma coisa valiosa, a nossa reacção é com frequência precisamente esta. Talvez porque nos alivie ter uma explicação convincente sobre os eventos que conduziram à perda, como se assim aprendêssemos a evitar contratempos idênticos. Igualmente importante parece ser conhecermos onde o prejuízo aconteceu, mantendo acesa a esperança de, voltando ao local, reavermos o que se perdeu. Mais tarde achamos graça e, suspirando, confessamos algo como «Se soubesse onde perdi o brinco, não estaria realmente perdido.»
Por tudo isto, não nos surpreende que os lugares onde os registos antigos dos herbários indicam a presença de espécies entretanto desaparecidas sejam hoje escrutinados pelos cientistas em busca de possíveis sobreviventes. Porém, reencontrar as localidades onde há um século vicejavam plantas interessantes, ou onde se situavam as pradarias de Epipactis palustris de que fala G. Sampaio, é na prática impossível. Os apontamentos em herbários de outrora são vagos, sem coordenadas ou referenciais, servindo-se muitas vezes de indicações geográficas que entretanto deixaram de ter uso corrente. Mas os botânicos conhecedores e experientes guiam-se pela ecologia, pelo tipo de solo, pelas associações entre plantas, e outros parâmetros biológicos preciosos, e não raro redescobrem populações em locais que se julgavam degradados e sem valor.
Tal como a orquídea a que aludimos, a asterácea que está hoje na vitrina já terá sido abundante no que actualmente se designa Área Metropolitana do Porto. Restam pequenos redutos onde a procurar, em Portugal ou em Espanha, e as populações conhecidas são dispersas e com tendência a regredir. É um endemismo da Península Ibérica que aprecia solos pantanosos, turfosos ou arenosos encharcados, sempre mais ou menos próximos do mar. Mas esses habitats praticamente desapareceram da nossa faixa litoral, ou estão irremediavelmente estragados com a construção de casas, portos, aeroportos e instalações industriais, a que se somam o desvio, entubamento ou poluição de ribeiras, e o uso intensivo da beira-mar para fins de lazer. Contudo, Paulo Alves conseguiu reencontrar o Cheirolophus uliginosus num eucaliptal em Matosinhos, mesmo ao lado do aeroporto do Porto, com solo macio e profusamente irrigado. Estas fotos são das plantas desse recanto peculiar.
Do género Cheirolophus só se conhecem três espécies ibéricas, duas em Portugal continental: a C. sempervirens, planta de base lenhosa que vive em orlas de bosques, taludes e afloramentos rochosos; e a C. uliginosus, herbácea vivaz com hastes fistulosas, capítulos florais solitários com pedúnculos compridos que parecem clavas e que nascem no topo de caules que podem atingir cerca de metro e meio de altura. As flores são de cor magenta, as marginais femininas, as do centro masculinas. Brotero designou-a Centaurea uliginosa em 1804, mas mudou de género em 1976 pela mão do botânico checo Josef Dostál (1903-1999), e é esse o nome em vigor.
6 comentários :
Belíssimo achado (de viagem?) por quem sabe o que e onde procurar, sem necessitar de detectivar!
Planta que certamente aproveita os refúgios que lhe resta e assim também os transforma pela cor.
Talvez outros também a possam encontrar com esta bela descrição do solo predilecto.
Abraço
Carlos M. Silva
Tão bonitinha com sua cabeleira violeta.
E a Cheirolophus massonianus (Lowe) A. Hansen & Sunding na Madeira e Porto Santo. Também merece referência.
Tem razão, Fátima Isabel, obrigada por nos lembrar. Só conhecemos esse endemismo em fotos (e através dos alertas para a sua raridade).
Carlos: No lugar em Matosinhos onde a vimos há «limpezas» frequentes para arejar os eucaliptos. Um dia varrem de mais...
bea: São cabeças grandes, realmente vistosas. A população tem uma centena de plantas e, por sorte, estavam quase todas em flor. (Sorte é modo de dizer: tivemos de lá ir duas vezes porque na primeira só havia folhas...).
Que bonitas fotos! Ainda bem que o encontraram!
No final do século XIX, Edwin Johnston, um botânico amador de ascendência inglesa, referia na sua obra mais divulgada, Esboço d'un calendario da flora dos arredores do Porto., publicada nos Annaes de Sciencias Naturaes, a presença de várias populações desta espécie:
"CENTÁUREA ULIGINOSA, Brot.
Hab. — S. Gens, Boa Nova, Perafita, Serra de Val-
longo, Alfena e Valladares, nos lameiros e em terras pan-
tanosas."
Apenas encontrei as populações de Gaia e Matosinhos. Curiosamente ele encontrou uma população de Serratula tinctoria em Perafita que ainda sobrevive no pinhal perto do Cheirolophus mas do outro lado da autoestrada.
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