Espadas rombudas
Iris latifolia (Mill.) Voss [= Xiphion latifolium Mill.]
Foram exactamente dois, e separados por centena e meia de quilómetros, os lírios que avistámos na nossa viagem à Cantábria. O primeiro, equilibrado numa ladeira íngreme junto a uma ribeira, não oferecia condições de segurança para ser fotografado; o segundo, que nos apareceu já nas Astúrias entre duas das inúmeras curvas de uma estrada de montanha, ainda mais nos atrasou o almoço pelo qual os estômagos há muito clamavam. Dirá o leitor bem intencionado mas distraído que valeu a pena a paragem, pois pelas bandas de cá o lírio-do-Gerês não costuma oferecer-se aos preguiçosos que não se afastam das estradas. Mas não se tratava do lírio-do-Gerês, nem nós esperaríamos encontrá-lo tão longe da serra que lhe serve de berço. Observe o leitor atentamente as fotos no escaparate e diga se este lírio não lhe parece algo anafado, com a flor quase sufocada por um intumescido colarinho de brácteas. Compare-o depois com o genuíno e inimitável lírio-do-Gerês e não deixe de dar a merecida palmada na testa por tão facilmente se deixar iludir. Entre a elegância de um e o ar atarracado do outro não há confusão possível. Contudo, por deformação profissional, os botânicos não se contentam com aquilo que salta à vista, e tudo têm que traduzir por palavras esdrúxulas e números rigorosos. Descodificada a gíria, os leigos podem anotar estas diferenças adicionais entre as duas espécies: as flores do lírio-da-Cantábria são maiores, com cerca de uma vez e meia o tamanho das do lírio-de-Gerês, e, ao contrário destas, não exibem uma penugem amarela na face superior das tépalas externas; finalmente, fazendo jus ao epíteto latifolia, o lírio-da-Cantábria tem folhas duas vezes mais largas, ainda que também filiformes.
As flores dos lírios são das mais vistosas e complexas do reino vegetal. Aquilo que pode parecer um muito simétrico arranjo de três flores é na verdade uma única flor, que é formada por três tépalas externas, três tépalas internas fazendo de penachos, e três estiletes petalóides, cada um deles cobrindo um estame e parte de uma tépala externa. O modo como o estilete se cola à tépala ajuda, por exemplo, a diferenciar o I. xiphium destes seus dois congéneres mais nortenhos.
O lírio-da-Cantábria, a que poderíamos também chamar lírio-dos-Pirenéus se tivéssemos ido assim tão longe, vive em matos, prados húmidos e clareiras de bosques nas montanhas do extremo norte da Península Ibérica. Avança até à Galiza mas fica longe da fronteira com Portugal, e abdica de ser um endemismo ibérico ao surgir também nos Pirenéus franceses. A sua floração, algo tardia, decorre entre Junho e Agosto.
4 comentários :
Obrigada, Amigos, por mais esta maravilha! Quando olhei para as fotos, pensei logo no Lírio do Gerês, que tive o privilégio de ver e admirar uma única vez! Pelas vossas belas palavras percebi as diferenças!
Este blog é um regalo para o espírito de quem ama as plantas!
Um terno abraço
Manuela
Obrigado pelo incentivo, Manuela. Lembrei-me que este ano não vimos o lírio-do-Gerês, o que é um desleixo quase imperdoável. Para o ano não falha.
Abraço,
Paulo Araújo
Quem ainda não viu nem um, nem o outro, sou eu e grande pena tenho. Em todo o caso, já não é mau ter a oportunidade, proporcionada pelo Paulo e pela Maria Carvalho, de conhecer esta e outras maravilhas. Grato.
Gratos ficamos nós pela simpatia, Francisco. Não é muito difícil encontrar o lírio-do-Gerês, embora possa ser necessário caminhar um pedaço. A altura ideal é em meados de Junho. A norte de Pitões das Júnias, perto da fronteira, ele é relativamente frequente.
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