15/05/2016

Flora endémica do Porto Santo: Erysimum arbuscula

Ao contrário do que anunciavam em uníssono os cartazes turísticos, raramente tivemos céu limpo durante os quatro dias que passámos no Porto Santo. Durante uma tarde e uma noite as nuvens explicaram ao que vinham, fazendo cair uma chuva comparável às melhores que temos no continente. Imaginámos que o fenómeno inaudito seria recebido como uma benção numa ilha ressequida, semidesértica, onde as ribeiras profundamente escavadas no solo arenoso são apenas memória de águas há muito passadas. Mas, ao tomarmos gradual consciência de certos estranhos sinais que vínhamos registando, percebemos que talvez a chuva não fosse bem-vinda, e não apenas por contradizer a imagem turística da ilha. É que ninguém no Porto Santo se comporta como se a água fosse um problema. No hotel, não há avisos exortando os hóspedes a poupar água. Os relvados exibem um verde brilhante, e na própria tarde em que choveu grosso a rega automática não deixou de funcionar. O campo de golfe, inaugurado em 2008, tem muitas palmeiras, uma relva verdíssima e sete lagos artificiais. Na estrada marginal, com sete quilómetros de extensão, só em curtos troços se podem ver o mar e a praia, que de resto estão tapados por um cortina de hotéis e aldeamentos turísticos em contínua e desenfreada expansão. Tais empreendimentos seriam impensáveis numa ilha tão pequena (11 Km de comprimento, 4 Km de largura máxima) se o consumo de água estivesse racionado. A explicação afinal é simples: a água que corre nas torneiras da ilha vem do mar, e o mar é inesgotável. Porto Santo tem a funcionar, desde 1979, a única central de dessalinização em território português. O processo de tornar potável a água do mar é caro, mas tem-se tornado ambientalmente menos oneroso com recurso à energia solar. Agora todos os sonhos são possíveis: queira o homem (esperemos que não, mas os sinais são ameaçadores) e o Porto Santo poderá converter-se de uma ponta à outra num resort enxameado de hotéis, enquadrados pelas mesmas palmeiras que enfeitam as Caraíbas ou as ilhas dos mares do sul.

Tirando pequenas parcelas cultivadas entre as dunas secundárias, que pouco parecem produzir e a prazo serão engolidas por construções turísticas, Porto Santo não tem agricultura ou pecuária que se veja. Nas zonas planas a paisagem é nua, sem árvores. Antes de a ilha ser habitada terão existido bosques de zambujeiros e dragoeiros e, nas encostas sombrias dos picos mais elevados, uma laurissilva de barbusano semelhante à que ainda subsiste na Madeira. Tudo isso desapareceu: o barbusano (Apollonias barbujana) e o dragoeiro (Dracaena draco) estão extintos na ilha, e do zambujeiro (Olea maderensis) sobram apenas exemplares isolados. Uma ilha assim desertificada tornar-se-ia inabitável mais tarde ou mais cedo, e só o aproveitamento da água do mar permitiu salvá-la desse destino. Mas já antes, em meados do século XX, tinha havido tentativas de suavizar as agruras da natureza, com plantações que revestiram de árvores os cumes de seis ou sete dos picos que pontuam, abruptos e dissonantes, a paisagem da ilha. As árvores, além de travarem a erosão, iriam reforçar as captações de água para alimentar ribeiros e aquíferos. Em suma, uma ideia salvadora que nos permite, sessenta ou setenta anos mais tarde, contemplar, do topo do Pico Branco, uma paisagem que só não passa por alpina porque o mar está logo ali.


Pico Branco, ilha do Porto Santo
A esta distância no tempo, podemos lamentar que essa meritória arborização tenha sido feita em exclusivo com espécies exóticas de carácter completamente alheio ao da vegetação original da ilha. Teria sido talvez possível reconstruir um arremedo de laurissilva, mas em vez disso plantaram-se coníferas: ciprestes (Cupressus macrocarpa, a espécie dominante) e várias espécies de pinheiros. À época, contudo, as árvores autóctones não eram valorizadas como, mais no discurso do que na prática, passariam entretanto a ser; e também no continente, sem o menor rebuço, se fizeram então extensas plantações de coníferas exóticas (por exemplo no Gerês e na serra da Estrela), e em lugares onde nem havia a desculpa de a floresta original ter desaparecido.

Ainda assim, é nos picos, e em especial nos afloramentos rochosos que formam a crista de muitos deles, que se concentram os melhores resquícios de vegetação nativa, maioritariamente composta por herbáceas mas contando ainda com alguns importantes arbustos. Seria um erro desprezar a flora do Porto Santo por ser uma versão empobrecida da flora da Madeira, pois nesta pequena ilha existem formações vegetais que não ocorrem na maior ilha do arquipélago (um exemplo óbvio é dado pela flora dunar) e, além disso, ela detém pelo menos uma dezena de endemismos. Falando mais claramente: no Porto Santo há umas dez espécies de plantas que não ocorrem na Madeira nem em nenhum outro lugar do mundo. Vamos mostrar seis delas numa série de fascículos de que este é o primeiro.



Erysimum arbuscula (Lowe) Snogerup


Esta pequena crucífera lenhosa, com uns 30 cm de altura máxima, folhas lineares dispostas em tufos na extremidade das hastes, e vistosas flores de cor lilás, foi descrita originalmente por Richard Thomas Lowe (1802–1874), autor do indispensável "A Manual Flora of Madeira" (1868), e chamou-se então Cheiranthus arbuscula. É uma séria concorrente ao título de planta mais bonita do arquipélago, e vivêssemos nós num país dado à jardinagem seria componente obrigatória dos jardins xerófilos à beira-mar. A verdade, porém, é que a planta é desconhecida dos próprios porto-santenses, e mesmo os mais informados só lhe saberão o nome, que costuma ser recitado (desacompanhado de fotos) quando se desfia o elenco das maravilhas naturais da ilha (exemplos: 1, 2, 3). Este curioso hábito de se incentivarem os outros a "descobrir" aquilo que os autores dos textos de incentivo manifestamente nunca descobriram não se deve apenas à comprovada indiferença dos portugueses pelos seus valores naturais, mas também, num caso como este, à grande raridade do Erysimum arbuscula. Não era assim no século XIX, pois Lowe escreveu que este goivo arbustivo se encontrava com abundância nas rochas perto do topo do Pico Branco e do Pico do Concelho. Nós, que subimos aos dois picos, só o vimos no Pico Branco, duas ou três plantas debruçadas numa ravina. Que se terá passado entretanto? Será abusivo conjecturar que a arborização destas encostas (pelo menos no Pico Branco, já que o Pico do Concelho continua despido) provocou uma redução drástica do habitat da espécie?

4 comentários :

bea disse...

Bolas! Que fotos de extraordinária beleza! Volto mais logo para a leitura do post.Bom Dia.

Francisco Clamote disse...

Linda, a planta. Belíssimo, o texto.

bea disse...

É na verdade um goivo muito bonito. Desconheço a ilha, mas como serão as outras plantas para serem mais bonitas...

ZG disse...

Uma verdadeira maravilha!!!