31/08/2020

Muralhas de Miranda



O que resta hoje da muralha defensiva de Miranda do Douro conta uma longa história de batalhas, invasões e ocupações do nordeste transmontano, e de restauros em tempos de paz. A ruína tem, porém, um atractivo de outra ordem, e foi isso que nos levou a Miranda: é vizinha de uma população de Silene conica, herbácea rara em Portugal, e que ali parece apreciar o solo arenoso e o agasalho do muro velho de séculos. A muralha parecia ter sido aspirada recentemente, bem limpa da pátina terrosa, talvez por ordens de conservadores empenhados; mas o recanto da Silene estava felizmente sem vestígios da acção de roçadoras ou herbicidas. Em Julho, com um ar muito quente e seco, não chegámos a tempo de lhe ver as flores; a maioria das cápsulas dos frutos, com formato engraçado de cebola branqueada pelo sol, já nem continha sementes. Viagem perdida, lamentámos, regressaremos sem fotos da desejada. Mas mesmo ao lado, em plena floração, e contente com o habitat pedregoso e a temperatura elevada, morava outra planta com cerca de um metro de altura que nos serviu de consolação.


Plumbago europaea L.


As plantas da espécie Plumbago europaea são perenes, algo lenhosas na base, com talos erectos e delgados, folhas ásperas e flores pequeninas agrupadas em espiga. Podem ver nas fotos como cada flor tem um cálice glanduloso onde se apoia uma corola violeta, com a cor mais intensa nas nervuras a meio dos lóbulos. As folhas um pouco enrugadas parecem polvilhadas de farinha, decerto mais um lenitivo para a planta sobreviver ao calor intenso e à escassez de água. Tem uma distribuição ampla em quase toda a Península Ibérica, sul da Europa e região mediterrânica, mas os registos em Portugal confinam-na aos dois extremos: Algarve e Trás-os-Montes.

A denominação vernácula erva-das-feridas ou erva-de-santo-António alude a virtudes curativas ou analgésicas das folhas e raízes, e a uma acção antimicrobiana eficiente que a farmacopeia tradicional lhe atribui, e que alguns estudos recentes têm vindo a confirmar.

23/08/2020

Melancias de bolso


Bryonia verrucosa Dryand.


Melancias, melões e meloas fazem-nos dar graças à vida por existir o Verão. Esquecemos o calor, as queimaduras, os mosquitos, os fios de suor a escorrer pela cara, e só queremos lembrar aquele momento em que o melão gelado e doce se nos enrola na língua, deslizando depois goela abaixo para nos refrescar o âmago. Tal como a abóbora, mais associada ao Inverno, esses excelsos frutos são produzidos por plantas da família Cucurbitaceae, cultivadas pelo homem há centenas ou milhares de anos. É uma família constituída por plantas rastejantes ou trepadeiras, amiúde anuais, com flores de cinco pétalas em vários tons de amarelo, caracteristicamente lanudas ou frisadas. Além de podermos vê-las crescer nos mais modestos quintais, também há cucurbitáceas na natureza, só que dão frutos de menor tamanho, por vezes tão tóxicos que nem a medicina popular lhes quer dar uso. Sofrem desse óbice as duas únicas espécies espontâneas em Portugal continental, Ecballium elaterium e Bryonia dioica.

Os frutos da Bryonia dioica parecem tomatinhos. Em contraste, a Bryonia verrucosa, endémica das Canárias, produz perfeitas melancias em miniatura (foto em baixo), de não mais que 3 cm de diâmetro, com as faixas verde-escuras alternando com faixas claras tal como nas melancias genuínas. Claro que as aparências enganam, e nem um nem outro destes frutos miniaturais se deixam ou devem comer. Não por acaso, a Bryonia verrucosa é conhecida nas Canárias como venenillo. Além da desproporção de tamanhos, outra diferença marcante entre o venenillo e a melancia está no ciclo de vida: a Bryonia verrucosa (tal como a B. dioica) é uma planta perene, enquanto que o Citrullus lanatus (melancia) é anual.

Presente em todas as ilhas das Canárias com excepção de Fuerteventura, a Bryonia verrucosa é uma trepadeira de modesto alcance, com hastes que raramente ultrapassam os dois metros de comprimento e flores com cerca de 2 cm de largura. Vive em matos, ou ocasionalmente sobre muros velhos, em zonas de média ou baixa altitude, quase sempre abaixo dos 500 metros. A floração e frutificação decorrem de Outubro a Março, que em latitudes menos bonançosas são os meses de Outono e Inverno. O exemplar das fotos acima, que foram captadas em Dezembro do ano passado, vive numa berma de estrada na Grã-Canária, perto da reserva de Los Tilos de Moya.

01/08/2020

Linária sozinha


Linaria intricata Coincy
Na berma de um estradão florestal a norte de Bragança, num ponto onde o pinhal vai dando lugar às estevas em formação cerrada, uma tímida linária fazia abrir, no final de Junho, as primeiras flores da temporada. A canícula estival não tardaria a instalar-se e a temporada adivinhava-se curta. E ademais solitária, pois nenhuma outra planta da mesma espécie se descortinava nas redondezas. Exactamente um ano mais tarde, nem um exemplar foi possível encontrar nesse local. Contudo, a 1 ou 2 km de distância, em clareira de uma mata de carvalho-negral, por entre rosetas de Rhaponticum exaltatum que nunca pensaram em dar flor, novo exemplar solitário da mesma linária dedicava-se à difícil tarefa de existir.

Linaria intricata é como se chama esta diminuta e esquiva planta anual, endémica da Península Ibérica, baptizada em 1900 pelo botânico francês Auguste-Henri de Coincy (1837-1903) a partir de exemplares colhidos na província de Córdova. A descrição original, que pode ser aqui consultada, parece ajustar-se bem ao exemplar das fotos, em particular no que diz respeito à glandulosidade dos cálices e das margens das folhas. Ao contrário do que sugere o epíteto intricata, o grau de ramificação é escasso, talvez por se tratar de um exemplar ainda jovem. Onde a discrepância é notória é na cor das flores, que Coincy diz serem amarelas mas no exemplar fotografado se apresentam de um lilás pálido. Contudo, a revisão do género Linaria na Flora Iberica, surgida em 2009, admite essas variações de cor, que aliás não são invulgares no género. A linária das nossas praias nortenhas (Linaria polygalifolia subsp. polygalifolia) dá flores amarelas, mas a mesma planta (ou aquilo que os entendidos afirmam ser a mesma planta) dá flores rosadas ou arroxeadas em alguns pontos da costa galega (por exemplo, em Corrubedo — veja-se a foto em baixo).

Em Portugal a Linaria intricata já foi conhecida como Linaria coutinhoi. O autor da segunda combinação apontou subtis diferenças entre as duas espécies que os autores da Flora Iberica, ao subordinarem a segunda à primeira, optaram por desvalorizar. O exemplar em que se baseou a descrição da L. coutinhoi foi colhido por Gonçalo Sampaio nas areias do rio Douro, perto do Porto. Seja qual for o nome usado, há muitas décadas que a planta não é avistada no vale do Douro em território nacional. É mais uma das muitas vítimas das barragens que ao longo da segunda metade do século XX foram seccionando o rio, transformando-o numa sucessão de pachorrentas albufeiras. Nos últimos anos, a L. coutinhoi (ou L. intricata) tem sido avistada, esporadicamente, em certos pontos da margem portuguesa do Douro internacional, em substrato arenoso ou gravilhento, em zonas muito declivosas. E outras pessoas além de nós a têm encontrado nos arredores de Bragança, em zonas incluídas no Parque Natural de Montesinho. Em todas essas ocasiões, só muito raramente o número de exemplares detectados ultrapassa a dezena. As excepções estão ligadas à ocorrência de incêndios: em áreas recém-ardidas, a planta pode formar "autênticas pradarias", como testemunhou Anabela Amado, que a observou em 2007 nessas felizes condições. Quando a vegetação de novo se adensa, a planta tende a desaparecer gradualmente.

Dependendo presumivelmente dos incêndios para sobreviver, talvez a Linaria intricata não ache graça à ideia impossível, mas que vai fazendo escola, de um Portugal sem fogos. No âmbito da Lista Vermelha da Flora de Portugal, a espécie foi estudada e prospectada; mas o carácter fugaz e imprevisível das suas populações, a grande oscilação do número de exemplares de ano para ano e um fraco conhecimento da sua ecologia fizeram com que os dados disponíveis fossem tidos como insuficientes para a atribuição de qualquer estatuto de ameaça.


Linaria polygalifolia Hoffmanns. & Link subsp. polygalifolia — nas dunas de Corrubedo, Galiza