22/06/2021

Laços de família

Euphorbia mellifera Aiton


Ocorrem na ilha da Madeira, em habitats muito distintos, duas espécies arbustivas de Euphorbia: a E. piscatoria , exclusiva do arquipélago madeirense, que ocupa as falésias soalheiras da costa sul da ilha e atinge não mais de 2 metros de altura; e a E. mellifera, endémica da Madeira e das ilhas de Tenerife, La Gomera e La Palma, nas Canárias, que mora na sombria laurissilva e pode exibir porte arbóreo, alcançando por vezes os 10 metros de altura. Se as discrepâncias no porte e nas preferências ecológicas não bastarem para diferenciar estas duas figueiras-do-inferno (nome pelo qual ambas são conhecidas na Madeira), refira-se ainda que as folhas da E. mellifera são grandes (até 20 cm de comprimento), verdes e persistentes, enquanto que as da E. piscatoria são curtas (até 7 cm), glaucas e caducas no Verão.

Sem ser abundante, a Euphorbia mellifera é fácil de encontrar na laurissilva madeirense junto às muitas levadas por onde os turistas são convidados a desfilar, e também nos escarpados vales das ribeiras que desaguam na costa norte da ilha. Pior sorte teve ela nas Canárias: embora as três ilhas onde está presente sejam as únicas do arquipélago que conservam uma extensão significativa de floresta laurissilva, talvez o menor grau de humidade ou as temperaturas mais elevadas lhe proporcionem aí condições menos favoráveis do que na Madeira. Certo é que a tabaiba-de-monteverde (é esse o seu nome canarino) é tão rara nessas ilhas que está em perigo de extinção nas Canárias.

A Euphorbia mellifera é uma excelente planta ornamental que, como quase todas as que fazem parte da nossa flora espontânea, nunca foi cultivada em jardins portugueses — pelo menos nos do continente. Deu-se contudo muito bem lá fora e são muitos os hortos ingleses e americanos que a têm para venda, tanto em semente como em vaso. E foi no Jardim Botânico de Oxford que travou conhecimento com a sua prima dos Açores, Euphorbia stygiana, nascendo desse relação um híbrido, Euphorbia x pasteurii, que também já entrou no comércio hortícola.

O facto de esse híbrido ter surgido fortuitamente, apenas porque as duas eufórbias foram plantadas lado a lado, sugere uma grande afinidade genética entre duas espécies cujas semelhanças morfológicas são evidentes. O mais provável, atendendo à idade geológica das diferentes ilhas, é que a Euphorbia mellifera tenha tido origem nas Canárias e que, após colonizar a Madeira, se tenha instalado nos Açores, onde evoluiu para aquilo que é hoje a Euphorbia stygiana. E é provável que o elo de ligação entre as duas more na ilha de Santa Maria, a mais meridional dos Açores: trata-se da Euphorbia stygiana subsp. santamariae, uma planta que está em perigo crítico de extinção na natureza (mas há razões para ter esperança) e que, morfologicamente, é intermédia entre a E. mellifera e a E. stygiana subsp. stygiana (parecendo-se aliás mais com a primeira do que com a segunda).

Ainda que muito plausíveis, tudo isto são conjecturas aguardando um estudo fundamentado — que, com as modernas técnicas filogenéticas, qualquer investigador qualificado faria com facilidade. Mas mesmo os amadores desqualificados podem reunir pequenos indícios usando, por exemplo, o olfacto. Na E. mellifera, o epíteto específico refere-se ao suave cheiro a mel da inflorescência. Tanto quanto sabemos, a E. stygiana s.str. não partilha dessa qualidade, e é mesmo provável que tenha flores inodoras. Quanto à E. santamariae, da única vez que tivemos oportunidade não lhe cheirámos as flores, mas era importante que alguém o fizesse e reportasse o resultado.

17/06/2021

Violeta da Madeira

O género Viola contém cerca de 600 espécies que se adaptaram bem ao clima temperado do hemisfério norte, com raras excepções em climas mais extremos. Na nossa visita recente à Madeira, procurámos algumas das plantas dos picos mais altos, as que florescem antes que o calor se torne excessivo, e dessa lista constava uma viola. Depois de tentar, sem sucesso, avistar algum exemplar dessa viola em flor no Pico do Areeiro, encontrámos finalmente uma planta florida no Pico Ruivo. Tivemos de subir acima de uma espessa nuvem, de sentir por vezes as orelhas e a ponta do nariz demasiado aquecidas pelo sol, para de seguida nos impacientarmos com os arrepios de vento frio, de percorrer com muita cautela bordos de escarpas mal protegidas, e de suspirar com o cansaço nos olhos de tanto procurar flores pequeninas; mas na volta, com a fotografia tão desejada, esvoaçámos de contentamento. Apesar dos inúmeros turistas, não foi preciso disputar um lugar na fila para fotografar a única flor de Viola paradoxa que ali se via. Em alegres almoços de campanha, os visitantes queriam apenas fotografar-se no belo cenário de picos com nuvens, decididos a registar, para de imediato enviar ao mundo, a heróica chegada ao topo da ilha.



Endémica do Arquipélago da Madeira, esta violeta rara está protegida pelo Anexo II e IV da Diretiva Habitats e pelo Anexo I da Convenção sobre a Vida Selvagem e os Habitats Naturais na Europa. É uma herbácea perene, de folhagem densa e folhas carnudas. As flores são solitárias e axilares, com uma corola de cerca de 2,5 centímetros de diâmetro e pétalas enfeitadas com nervuras escuras (como bigodes de gato).

Viola paradoxa Lowe

Na primeira descrição desta espécie, em 1838, Lowe assinala a parecença do tamanho, formato e disposição das pétalas das flores da Viola paradoxa com as da espécie Viola calcarata (uma planta alpina, nativa das montanhas do sudeste da Europa); as folhas, porém, escreve Lowe em latim, são como as da Viola tricolor (os pequenos amores-perfeitos coloridos em vários tons que vemos floridos entre Abril e Setembro nos canteiros de alguns jardins públicos). Uma mistura tão invulgar de morfologias valeu-lhe naturalmente o epíteto paradoxa. Floresce em Junho e vive em fissuras de rochas na zona montanhosa central da Madeira, dos 1600 aos 1800 metros de altitude.

05/06/2021

Linária das neves

Linaria alpina (L.) Mill.
Os cumes das grandes cadeias montanhosas são, a seguir ao fundo dos oceanos, os lugares menos acessíveis do planeta, mantendo-se com ecossistemas mais ou menos intocados por serem pouco propícios à presença humana. Claro que o desejo pela aventura e, mais tarde, a vontade de tornar esses lugares acessíveis aos menos enérgicos acabaram por devassar alguns deles com teleféricos, pistas de esqui, estradas, hotéis e toda a parafernália do turismo de massas. Ainda assim, nos Pirenéus, Alpes, Picos de Europa, Gredos e tantas outras montanhas pela Europa fora, a grande maioria dos cumes não se alcança sem esforço e uma boa dose de coragem. Até que a certa altura compreendemos que, pela idade ou circunstâncias de vida, há lugares que para sempre nos estarão vedados, e isso é algo que não devemos lamentar.

No nosso caso, há plantas que nunca iremos ver, alcandoradas nos picos para que nunca lhes falte o aconchego gelado que tanto apreciam. Mas na verdade não são assim tantas as plantas que estão restritas às maiores altitudes. Acontece é que aquelas que se distribuem desde os mil e poucos metros até bem acima dos dois mil vão florindo ordenadamente de baixo para cima, acompanhando o degelo — e, no período estival, quem as queira ver floridas tem que subir mais alto. Na visita que há uns anos em Agosto fizemos aos Pirenéus, onde nos ficámos preguiçosamente pelos grandes vales, poucas foram as plantas que vimos em flor.

Uma das excepções foi esta Linaria alpina, que vimos tanto na serra de Gredos como nos Pirenéus, e que com relutância nos mostrou duas ou três flores em ambas as ocasiões. É uma planta anual rasteira, de floras roxas ou azuladas com distintivas manchas amarelas no labelo, que se distribui por todas as grandes cadeias montanhosas da Europa ocidental. Aparece geralmente em altitudes acima dos 1500 metros, e atinge os 3300 nos Pirenéus. A serra da Estrela, embora compreendida nesse intervalo altitudinal, fica fora da área de distribuição da espécie, culpa dos invernos menos rigorosos causados pela proximidade do Atlântico. Por isso não desfrutámos do conforto burguês de termos a planta à mão de fotografar ao apearmo-nos do automóvel. Em Gredos, onde as estradas se quedam muito abaixo dos cumes, foram 5 ou 6 km por um trilho sempre a subir para a encontrarmos a uma altidude modesta, rondando os 2200 metros.