Laços de família
Ocorrem na ilha da Madeira, em habitats muito distintos, duas espécies arbustivas de Euphorbia: a E. piscatoria , exclusiva do arquipélago madeirense, que ocupa as falésias soalheiras da costa sul da ilha e atinge não mais de 2 metros de altura; e a E. mellifera, endémica da Madeira e das ilhas de Tenerife, La Gomera e La Palma, nas Canárias, que mora na sombria laurissilva e pode exibir porte arbóreo, alcançando por vezes os 10 metros de altura. Se as discrepâncias no porte e nas preferências ecológicas não bastarem para diferenciar estas duas figueiras-do-inferno (nome pelo qual ambas são conhecidas na Madeira), refira-se ainda que as folhas da E. mellifera são grandes (até 20 cm de comprimento), verdes e persistentes, enquanto que as da E. piscatoria são curtas (até 7 cm), glaucas e caducas no Verão.
Sem ser abundante, a Euphorbia mellifera é fácil de encontrar na laurissilva madeirense junto às muitas levadas por onde os turistas são convidados a desfilar, e também nos escarpados vales das ribeiras que desaguam na costa norte da ilha. Pior sorte teve ela nas Canárias: embora as três ilhas onde está presente sejam as únicas do arquipélago que conservam uma extensão significativa de floresta laurissilva, talvez o menor grau de humidade ou as temperaturas mais elevadas lhe proporcionem aí condições menos favoráveis do que na Madeira. Certo é que a tabaiba-de-monteverde (é esse o seu nome canarino) é tão rara nessas ilhas que está em perigo de extinção nas Canárias.
A Euphorbia mellifera é uma excelente planta ornamental que, como quase todas as que fazem parte da nossa flora espontânea, nunca foi cultivada em jardins portugueses — pelo menos nos do continente. Deu-se contudo muito bem lá fora e são muitos os hortos ingleses e americanos que a têm para venda, tanto em semente como em vaso. E foi no Jardim Botânico de Oxford que travou conhecimento com a sua prima dos Açores, Euphorbia stygiana, nascendo desse relação um híbrido, Euphorbia x pasteurii, que também já entrou no comércio hortícola.
O facto de esse híbrido ter surgido fortuitamente, apenas porque as duas eufórbias foram plantadas lado a lado, sugere uma grande afinidade genética entre duas espécies cujas semelhanças morfológicas são evidentes. O mais provável, atendendo à idade geológica das diferentes ilhas, é que a Euphorbia mellifera tenha tido origem nas Canárias e que, após colonizar a Madeira, se tenha instalado nos Açores, onde evoluiu para aquilo que é hoje a Euphorbia stygiana. E é provável que o elo de ligação entre as duas more na ilha de Santa Maria, a mais meridional dos Açores: trata-se da Euphorbia stygiana subsp. santamariae, uma planta que está em perigo crítico de extinção na natureza (mas há razões para ter esperança) e que, morfologicamente, é intermédia entre a E. mellifera e a E. stygiana subsp. stygiana (parecendo-se aliás mais com a primeira do que com a segunda).
Ainda que muito plausíveis, tudo isto são conjecturas aguardando um estudo fundamentado — que, com as modernas técnicas filogenéticas, qualquer investigador qualificado faria com facilidade. Mas mesmo os amadores desqualificados podem reunir pequenos indícios usando, por exemplo, o olfacto. Na E. mellifera, o epíteto específico refere-se ao suave cheiro a mel da inflorescência. Tanto quanto sabemos, a E. stygiana s.str. não partilha dessa qualidade, e é mesmo provável que tenha flores inodoras. Quanto à E. santamariae, da única vez que tivemos oportunidade não lhe cheirámos as flores, mas era importante que alguém o fizesse e reportasse o resultado.