Estrelas no asfalto
No noroeste da Grã-Canária, a velha e estreita estrada entre a Aldea de San Nicolás e Agaéte serpenteia pelas escarpas junto à costa, proporcionando em vários dos seus trechos — em especial na passagem pelo monte de Andén Verde — uma vista desafogada do Atlântico, que estende o seu infinito azul 500 metros abaixo. É prudente que o condutor não se distraia com as vistas, não vá o carro guinar para o precipício. Além disso, os instáveis taludes rochosos, aqui e ali protegidos por redes de aço, são uma permanente ameaça de derrocadas. Pensando bem, talvez seja avisado vedar a estrada ao trânsito automóvel e, em sua substiuição, construir outra, mais moderna, larga e rectilínea, furando por túneis e amputada de vistas. Foi isso mesmo que se fez — e, hoje em dia, até os caminhantes estão proibidos de percorrer a antiga estrada, que está cortada por blocos de betão e se vai rapidamente convertendo em cenário pós-apocalíptico: asfalto gretado, salpicado de calhaus e pedregulhos, e taludes revestidos por vegetação, a mesma vegetação que, pouco a pouco, vai ocupando e rompendo a faixa de rodagem. Como é usual nestes filmes, reina um silêncio ominoso (nem um motor se ouve) e não se avista ninguém; os heróis perguntam-se se além deles haverá outros sobreviventes.
O guionista intervém para lembrar que o filme é outro. Não houve qualquer fim do mundo e simplesmente desobedecemos às autoridades, andando algumas centenas de metros numa estrada de acesso proibido. Uma estrada escalavrada e perigosa, é verdade, mas nada que se compare (por enquanto) com as estradas abandonadas da costa norte da Madeira. Confiados na nossa sorte e experiência, achamos que a proibição não nos diz respeito. Sabemos que a exploração botânica comporta perigos, e aceitamo-los com sangue-frio.
De entre as plantas que avistamos destaca-se um arbusto muito compacto e arredondado, crescendo bem no meio da estrada e afirmando-se como pioneiro na vegetalização do asfalto. Trata-se claramente de um Asteriscus, género bem representado nas ilhas orientais das Canárias, as mais secas do arquipélago: em Fuerteventura e Lanzarote ocorrem três espécies, incluindo uma endémica de cada uma dessas ilhas (A. sericeus em Fuerteventura, A. intermedius em Lanzarote). Esta estrela da Grã-Canária, de seu nome Asteriscus graveolens, é menos vistosa do que essas outras, por ser de menor porte, ter folhas mais estreitas e capítulos mais pequenos. Talvez compense o défice de beleza pelo cheiro intenso, ainda que pouco agradável, a que se refere o epíteto específico. Contudo, ao contrário dos Asteriscus endémicos de Fuerteventura e Lanzarote, este Asteriscus graveolens da Grã-Canária não parece ter conquistado o apreço dos jardineiros.
O Asteriscus graveolens apresenta um grau de variabilidade assinável, e estão descritas na Grã-Canária duas subespécies. A subsp. stenophyllus (em cima, fotografada em Andén Verde), tida como endémica dessa ilha, é mais ramificada, e apresenta folhas acetinadas, concentradas nas pontas dos ramos. A subsp. odorus (em baixo, fotografada no Barranco del Sibério), que ocorre também em Marrocos, apresenta um aspecto algo desgrenhado e tem as folhas mais pubescentes, dispostas de forma espaçada. Ambas as subespécies receberam ordens de especialistas reputados para florir sobretudo na Primavera, nunca antes de Março e nunca depois de Junho. Está-se a ver que não ligaram nenhuma, pois as fotos são de Dezembro de 2019.
1 comentário :
Como diria Sofia: "habitam a substância do tempo".
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