Histórias de piratas
Os piratas eram criaturas previsíveis. Quando, em nome de um rei qualquer, tentavam invadir e saquear ilhas inimigas, procuravam sempre as enseadas que dessem abrigo aos navios e permitissem chegar rapidamente às povoações no interior da ilha. Nas ilhas com falésias cortadas a pique, impossíveis de escalar, os escassos pontos de acesso estavam ciosamente vigiados e defendidos, e pouco mais restava aos piratas do que ensaiar umas canhoadas a uma distância prudente antes de se porem ao fresco. Não era vida fácil, a deles. Mais valia ficarem-se pelos tradicionais assaltos aos navios mercantes: com maior ou menor derramamento de sangue, essas empreitadas sempre lhes traziam algum proveito.
La Palma obedece com rigor ao figurino da inviolabilidade — vencer e subjugar os Guanches não devem ter sido, nesta ilha, tarefas fáceis para os conquistadores espanhóis. Grande parte da costa, sobretudo no norte da ilha, está preenchida com falésias com 100 a 300 metros da altura. Aqui e ali alguns barrancos permitiriam ascender ao interior da ilha; mas, além de serem acidentados e íngremes, não dispunham de ancoradouros nas proximidades. No sul da ilha o panorama muda, e são vários os pontos bordejados por encostas baixas, de fácil escalada — mas seria também aí que as defesas da ilha estariam concentradas.
Os piratas modernos vêm de avião e vão-se embora uma semana depois. A ilha esforça-se por recebê-los bem, talvez porque os novos corsários deixem mais do que levam. Para eles não há falésias inacessíveis e, em vez de as atacarem de baixo, chegam por cima, aproveitando os caminhos de acesso às praias que os habitantes da ilha amavelmente esculpiram nas escarpas. As plantas que viveram em sossego durante os séculos de inofensiva pirataria são agora obrigadas a conviver com visitantes que as pisoteiam distraidamente, sem lhes dedicarem sequer um segundo de atenção. Ainda que façamos parte das hostes invasoras, tratamos as plantas com respeito: evitamos pisá-las, queremos saber-lhes os nomes e como vieram aqui parar.
A Polycarpaea smithii, que encontrámos em falésias de precário equilíbrio na costa norte de La Palma, e que vive também em La Gomera e em El Hierro, é uma das nove espécies do seu género nas Canárias. Quase todas são endémicas do arquipélago; a excepção é a P. nivea, que ocorre igualmente em Marrocos. O nome Polycarpaea, que significa "com muitos frutos", não é particularmente elucidativo quanto à morfologia deste género de cariofiláceas distribuído por zonas tropicais e sub-tropicais de África, Ásia e América. Incluindo desde herbáceas anuais a pequenos arbustos, as espécies deste género apresentam flores com sépalas hialinas (por vezes avermelhadas) e pétalas diminutas (em geral brancas ou de cor creme), reunidas em cimeiras densas; as folhas, frequentemente carnudas, variam de lineares a obovadas. A P. smithii, que é lenhosa, ramificada e de hábito rasteiro mais ou menos pendente, com hastes de não mais que 30 cm de comprimento, tem folhas lineares carnudas, opostas ou amiúde agrupados em verticilos.
Para se apreciar a variabilidade do género, mostramos em baixo a Polycarpaea carnosa, essa fotograda em Tenerife, na estrada do Teno. Tem o mesmo hábito rastejante e pendente da planta de La Palma, e o mesmo gosto por habitats rochosos; no entanto, as suas folhas são quase orbiculares e as sépalas são de um verde amarelado. No aspecto geral, e até pelas folhas arredondadas e suculentas, a P. carnosa quase se confunde com alguma espécie de Sedum ou de Aeonium.
2 comentários :
Uma boa história de piratas e piratarias!
E claro as miudezas que nos mostram.
Os Guanches foram admiráveis na ocupação das ilhas. Estes "comanches" de agora, acho, são mais piratas que os ditos. Li há dias que em Tenerife (Sul) estão a protestar pela ocupação de novos aldeamentos em lugares protegidos; e já deve haver tão poucos!
Abç
Uma história fascinante, sem dúvida.
Enviar um comentário